sexta-feira, 3 de março de 2023

A Copa do Brasil sob a ótica e ética do futebol negócio

Foi um dia emblemático para o momento vivido pelo futebol brasileiro fora das quatro linhas.

Na Copa do Brasil, apregoada como o torneio mais democrático do país, o Trem do Amapá jogou em Brasília para milhares de vascaínos, enquanto no Distrito Federal o Ceilândia jogou no estádio Sereijão apenas para torcedores do adversário, o Santos. 

Na prévia dos dois confrontos algumas vozes isoladas citaram o absurdo das situações que veríamos em poucas horas. Já no desfecho dos dois jogos, o silêncio imperou... Ou ao menos foi essa minha percepção. 

O que sim eu vi e ouvi sobre esses dois jogos foram matérias sobre premiação, valores e quanto é importante para o planejamento das equipes vencedoras seguir recebendo dinheiro. Não é novidade. Essa temática está sempre presente. O incômodo com as aberrações do regulamento é que parece cada vez mais ausente. O que isso significa?

Para mim significa que não há indignação com um time jogar fora de casa na Copa do Brasil, mesmo tendo mando de campo. Para mim significa que poucos acham fora de lugar que uma equipe jogue em seu estado/distrito com torcedores do adversário. Para mim quer dizer que sequer existe o questionamento ao fato de um torneio que se diz democrático e que tem como atrativo trazer equipes de todo o país na prática ser um palco de domínio e protagonismo dos grandes (mais um). Para mim diz ainda que, mais importante do que qualquer aspecto esportivo, emocional, cultural e simbólico, é quanto se paga e quanto se recebe por entrar em campo. 

Em resumo: para mim o que vimos e a total falta de repercussão do que vimos na quinta-feira é mais um episódio que reafirma a prevalência do futebol negócio contra o futebol das pessoas. Neste post aqui expliquei o que eu chamo de futebol negócio e o que eu chamo de futebol das pessoas e porque isso me chama a atenção e me incomoda. 


Ljupco/istockphoto.com
Crédito da foto: Ljupco/istockphoto.com


Vou explicitar aqui porque esses dois casos específicos conversam com as ideias que apresentei no outro texto. Primeiro é necessário frisar que no caso do Trem, não se trata de uma mera venda de mando de campo. Na verdade o Trem foi impedido de jogar no Estádio Zerão, em Macapá, por falta de laudos que atestassem a segurança e salubridade do local. Nas matérias que eu li fala-se em perda do prazo, o que me leva a pensar se era tão importante para a direção quanto eu imagino que deveria ser jogar em casa diante do próprio torcedor na Copa do Brasil. Eu, no entanto, não posso opinar muito mais que isso. Estádio tem condição? Não tem condição? Quem é que deveria (não quem deve) dizer isso? Sei que o time jogou a última Série D nesse estádio, isso sim! 

Bom, impossibilitado de jogar no Amapá, cabia ao Trem escolher outro lugar para mandar o jogo. E a escolha foi por Brasília, pelo estádio Mané Garrincha, este paraíso do futebol negócio! Construída com dinheiro público em um local de pouca tradição futebolística, a arena moderna faz a vida de empresários e dirigentes de clubes de futebol por meio do escambo entre despesas custeadas e bilheterias arrecadadas. Em Brasília o Trem jogou contra o Vasco com torcedores do Vasco e está tudo naturalizado.

"Fazer o quê? O time do Amapá não tem condição"
"Que chato, mas veja, pelo menos ganharam um dinheiro!"

Mediante essa situação e cenário, fico imaginando o torcedor do Trem.. A vida dele será para sempre a disputa das divisões inferiores apenas? Ir a jogos da quarta divisão e só? Já pensaram se o Trem engrossasse a partida e vencesse? Eles teriam sido privados dessa experiência histórica?! Por quê? E por quem? 

Já no caso do Ceilândia e Santos houve uma troca de mando mediante as ações de diferentes atores. Primeiro a detentora da transmissão que não aceitou que o Ceilândia mandasse o jogo no estádio Abadião. Depois o clube levou a partida para Taguatinga, no estádio Sereijão, e aí a coisa fica nebulosa. O clube abriu venda de ingressos com 100 reais a inteira. Depois disse que foi "comunicado pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal" que seria necessária a adoção de torcida única no estádio por questões de laudo técnico do estádio. A partir daí então, como os santistas já tinham comprado 80% dos ingressos (segundo o Ceilândia) o clube "teve que adotar torcida única do Santos". 

Eu não consigo apurar essa situação corretamente. Não sei se o clube fez tudo o que podia para ter o próprio torcedor no estádio e nem se a Secretaria de Segurança é que foi infeliz na decisão. Não sei avaliar laudos de segurança. Sei sim o seguinte: tamanho absurdo está naturalizado dentro dessa nossa lógica de futebol. 

"Ah, é o regulamento..."
"Ah, é a detentora dos direitos..." 
"Que chato, mas pelo menos eles ganharam o dinheiro dos santistas!"

A questão é prévia!

Não é o regulamento. Não é a detentora. Não é o laudo, não é o Vasco, não é o Amapá e não é o Mané Garrincha. Tudo isso é definido por quem tem a competência para definir. Ou melhor... A quem foi dada a competência para definir! Se você muda a premissa básica você busca as soluções e as ferramentas para garantir que o seu objetivo seja alcançado.

Vou dar exemplos sobre essas duas situações: 

- Assim que o Trem do Amapá se classificasse para a Copa do Brasil, diretoria do clube, CBF, Federação do Amapá, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Vigilância Sanitária estariam de prontidão para fazer os preparativos e garantir que o estádio da capital estivesse em condições para receber qualquer partida no mês de fevereiro. Se por acaso houvesse algum problema, CBF, Federação do Amapá e clube se prontificariam a NÃO realizar o jogo até que fossem corrigidos os problemas. 

- O Ceilândia tem o direito de jogar em seu estádio. Se a plataforma/detentora não tem condições de transmitir o jogo em determinado local, vale sentar à mesa e serem discutidas possibilidades. Se o Ceilândia vai para outro estádio, deve valer a divisão do estádio entre mandantes e visitantes e não pode existir cota ou falta de cota para impor torcida única. A polícia militar ou a segurança do estádio (stewards) precisam garantir que as duas torcidas possam ver o jogo, independentemente de 80% para um lado ou outro. Não se trata de laudo do estádio e sim de trabalho de segurança para garantir o evento entre duas torcidas que não são rivais. Isso é o normal de qualquer evento. Mas é preciso lutar por ele e não usar esse jogo como oportunidade para encher o estádio de santistas  a preços caros. 

E aí? Riu da minha cara né? Não te culpo. Tudo o que eu falei soa impossível e parece digno de escárnio. Mas pense comigo... Se o paradigma fundamental fosse mudado, seria tão absurdo assim? Se o fundamental não fosse o que está aí, mas sim o que o futebol das pessoas gostaria, seria tão estúpido? 

Esse é o meu ponto central e que - acho - algumas pessoas não entenderam ou fingem não entender. Cheguei a ser ironizado no Twitter por falar que essa situação do Ceilândia era fruto do futebol negócio. Me disseram que era justamente o contrário, pois o futebol negócio preza por "estádios cheios e experiências completas" e que, portanto, não é culpa do futebol negócio que vivamos esse tipo de absurdo e sim culpa das pessoas, como dirigentes, secretarias de segurança pública, etc. 

Pode ser que os que prezam pelo EVENTO pensem nessa parte de "estádio cheio, com povos em comunhão e experiências lindas", mas eu digo que o NEGÓCIO não pensa assim. O NEGÓCIO é contrário às pessoas. É a favor dos clientes e contra os torcedores. Preza pelos interesses dos empresários e não dos apaixonados e praticantes do futebol. Luta pela aniquilação das diferenças e homogeneização das experiências e torceres e não pela identidade, simbolismo e pertencimento que advém do futebol. O negócio vive do futebol e não para o futebol. 

O NEGÓCIO é prévio ao EVENTO. É o NEGÓCIO que diz que mais importante do que jogar em casa é jogar em uma casa que possa ser transmitida pela detentora dos direitos. É o NEGÓCIO que diz que o estádio precisa ter capacidade x ou y a partir da fase tal, agindo contra o senso de comunidade dos clubes mais humildes. É o NEGÓCIO que permite que preços de ingressos e polícia militar decidam quantos e quais torcedores vão participar do espetáculo do futebol. 

Aliás... É o NEGÓCIO da Copa do Brasil que determina o regulamento. É ele que diz que os times de menor ranking vão jogar em casa tendo a obrigação de ganhar. Sem meias palavras, para mim o subtexto do regulamento é só um: o time pequeno recebe o grande (ou vende o mando) para ganhar dinheiro vendendo ingressos para a torcida adversária e na sequência já se despede do torneio deixando a disputa para quem realmente importa ao futebol negócio. 

Aí vem as piadinhas do PIX, a premiação e o "quanto tal" deixou de faturar e seguimos em frente. Sem grandes questionamentos, sem grandes debates, mas sempre exaltando O MAIS DEMOCRÁTICO TORNEIO DO PAÍS. Pode até ser... Mas aí é aquela democracia bem brasileira que nós já conhecemos: uma elite dominante (econômica/política) pisando em cima do resto. 

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