sábado, 20 de fevereiro de 2021

O jogo do "encontre o diferente" nas falsas análises sobre futebol

Vira e mexe quando passo pelos canais da TV a cabo e chego nos "abertos" me deparo com atrações que jamais assistiria e deixo lá por um tempo. Em várias dessas zapeadas cheguei e deixei naqueles game shows que tem um chroma key, um apresentador hiperativo e alguma coisa na tela que é para o telespectador incauto/ingênuo "resolver" ou "decifrar" para ganhar um prêmio em dinheiro. Um desses "programas" trazia o jogo do "ache o diferente". Basicamente aparecem na tela 30 imagens parecidas e uma é diferente. Teoricamente ao achar a diferente você ligaria lá e ganharia o prêmio em dinheiro... Sem entrar nos méritos das várias denúncias de fraudes e má-fé que envolvem esse tipo de programa, gostaria de recorrer a essa proposta do game-show para falar sobre análises e opiniões sobre futebol. 



Nos últimos tempos tenho prestado cada vez mais atenção a isso. O "diferente" incomoda muito quem fala sobre futebol. A ponto de derrotas ou insucessos serem muitas vezes "explicados" por meio daquilo que foi feito de diferente, mesmo que isso não tenha relação alguma com a performance da equipe no gramado. 

O mais vigoroso exemplo que lembro dessa linha de análise em tempos recentes foi o jogo Emelec 2x0 Flamengo em Guaiaquil na Libertadores de 2019.  Naquela ocasião um recém-chegado Jorge Jesus não tinha Vitinho, De Arrascaeta e Everton Ribeiro para montar o setor de frente da equipe. A escolha então foi por Diego, Gérson e Arão por dentro, Bruno Henrique mais pela esquerda, Gabriel Barbosa no comando de ataque e Rafinha na ponta direita com Rodinei na lateral. As análises pós-jogo foram quase unânimes: Jorge Jesus "inventou" e o Flamengo perdeu. Simples não? Bastou olhar para os outros jogos e identificar o "diferente" para ganhar um prêmio - não em dinheiro, mas em "análise". 

De fato Rafinha não foi bem pela ponta direita, mas a derrota não teve a ver com essa escolha. Ou pelo menos ninguém conseguiu demonstrar que foi isso que causou a derrota. Além disso sumiram as discussões sobre qual era a ideia do treinador a fazer essa improvisação, quem deveria ser escalado ali e quem poderia ter feito coisa melhor e porquê. O Jesus "pardal" foi esquecido na semana seguinte e nunca mais voltou... Imagino eu que pelo fato do Flamengo praticamente não ter perdido mais depois daquela partida. 

Ainda sobre o Flamengo, recentemente os analistas correram para criticar a ideia de Rogério Ceni de "improvisar" Willian Arão na zaga da equipe. Sem debater o que poderia dar certo e errado, quais os pontos necessários para ser um zagueiro e o que Arão poderia adicionar e retirar do time, a ideia foi rechaçada. O "diferente" foi encontrado e caberia a ele explicar qualquer infortúnio ou dissabor. A questão é que a ideia deu muito certo e hoje - véspera da decisão contra o Internacional - a mesma turma lamenta o desfalque de Willian Arão na zaga. 

Sobre o Internacional, aliás... No começo de 2020 o "problema" do time treinado por Chacho Coudet era o fato de o técnico escalar "quatro volantes", o que seria uma ofensa à história do Internacional e razão pela qual a equipe não ganhava Grenais. Uma bobagem, pois no esquema 4-1-3-2 , apenas Musto tinha função de marcador, com Edenílson, Patrick e Lindoso pressionando o adversário no ataque e carregando a bola para os dois atacantes da equipe. Só que "é diferente", então é problemático. 

Voltando ao caso dos zagueiros... Quem se lembra da reação dos jornalistas e torcedores do São Paulo à ideia de escalar o lateral-esquerdo Léo e o jovem Diego Costa como defensores do tricolor na arrancada do time no Brasileirão de 2020? Foram as piores possíveis... Como assim fazer diferente? Fugiram à maioria as razões pelas quais o treinador poderia fazer isso, como eram os gols que o time estava tomando, de que maneira Léo e Diego poderiam contribuir e o que o técnico queria com as mudanças. Como o time ganhou, o "ache o diferente" ficou de lado por um tempo... Mas não por muito, pois logo na sequência veio a tese sebastiânica do volante Luan... Afinal, o São Paulo era o único que não jogava com um "primeiro volante", logo...  

De alguma maneira a própria ideia de Fernando Diniz sobre futebol foi atacada desde o início também por isso. "Como ousa esse cidadão propor algo diferente, quando todo mundo joga igual". Obviamente quando os insucessos vieram a culpa foi da "saída de bola" ou "da ideia de jogo", junto com uma estúpida cobrança por "ter outro jeito de jogar". Nada disso é capaz por si só de explicar derrotas e vitórias. E no caso ainda existe o agravante de o ex-técnico do São Paulo ter sido alvo da mais sórdida e desonesta campanha de desinformação e manipulação por parte de jornalistas que eu já vi na minha carreira. Mas essa é outra história... O ponto é: É muito mais fácil olhar para o diferente e dizer "foi isso". Porque o padrão dos outros dá conforto para uma lógica simplória, alheia ao jogo... "Se ninguém faz isso, ou ninguém fez isso e ganhou, então o diferente está errado". 

Eu vi o mesmo acontecer no São Paulo com Juan Carlos Osório e suas mudanças de escalação e posições e com Diego Souza, que "não era centroavante" e "não deveria ser centroavante". em 2018.  Sem debate, sem olhar para o campo, sem ponderar as intenções... Simplesmente um "ache o diferente" e retire seu prêmio. 

Pra fechar, um exemplo internacional... De forma geral pelo o que eu acompanho do futebol europeu as "improvisações", mudanças de posição, ideias diferentes e filosofias distintas de jogo são mais bem aceitas. No entanto, recentemente vi um movimento parecido com esse do "ache o diferente" no que se refere à campanha do Leeds United na Premier League. O técnico Marcelo Bielsa tem isso muito marcado na carreira. Por ter métodos diferentes e ser um "romântico da bola", muitas críticas recaem naquilo que ele faz de diferente. No entanto, o caso aqui é outro e se refere à resistência da imprensa e opinião pública à ideia do Leeds de jogar com a bola, atacar e propor o jogo contra todas as equipes que enfrenta. Tal proposta fez a equipe ter  derrotas incontestáveis, como dois reveses por 4 a 1 para Crystal Palace e Leicester, um 3 a 0 para o Tottenham e um 6 a 2 contra o maior rival Manchester United. Em todos esses dissabores o discurso da opinião pública e imprensa foi "o Leeds é ingênuo por achar que pode subir para a Premier League e jogar de igual pra igual". De onde vem essa verdade? Me parece que vem do fato de que normalmente quem sobe da segunda divisão passa 38 rodadas se aguentando na defesa e contando com os contragolpes para somar seus pontos e - quem sabe - sobreviver. Para alguns soa como um insulto não seguir a "cartilha dos humildes". Como assim eles não estão dispostos a vir aqui, se fechar e torcer por um erro?  Bom.. De qualquer maneira, até agora são 24 jogos disputados com 10 vitórias, 2 empates e 12 derrotas, o que coloca a equipe no meio de tabela. 

Pra fechar: esse exercício do "identifique o diferente" vir do torcedor não me incomoda muito. Ele não tem que pensar o jogo - embora eu ache que ele aproveitaria mais o clube e o jogo se o fizesse - e sim sentir. Mas de quem forma opinião me incomoda demais. Porque teoricamente o papel do jornalista/comentarista é ter dados, fatos, argumentos, informações e credibilidade para mostrar às pessoas o que está acontecendo. Que o exercício de análise de um esporte e um tema tão complexo se reduza a um gameshow de quinta categoria me parece uma ofensa e um desperdício.