sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Árbitros, arbitragens e a letra (não tão) fria da regra

A véspera do início do Campeonato Paulista 2023 é um bom momento para eu registrar aqui algumas ponderações sobre o tema arbitragem. Uma coisa que me incomoda muito é a incapacidade da imprensa de informar o público sobre quais são e como funcionam as regras do futebol. Há muito desconhecimento, um bocado de preguiça e, ao que me parece, uma boa dose de equívoco na comunicação por parte das pessoas que transmitem futebol. Claro, há profissionais de arbitragem muito ruins também dentro dos gramados, o que adiciona uma imprevisibilidade e dificuldade ainda maior para quem acompanha.


Елена Рыбакова, CC BY-SA 3.0 GFDL, via Wikimedia Commons
Sergei Ivanov apitando o jogo entre FC Lokomotiv Moscow e FC Tom Tomsk
(Crédito: 
Елена Рыбакова, CC BY-SA 3.0 GFDL, via Wikimedia Commons)

Como de costume, quando trato de um tema eu busco atestar o óbvio primeiro para depois ir construindo o raciocínio. Dito isso, lembremos do básico: o futebol profissional tem regras estabelecidas para que o jogo possa acontecer. As faltas são marcadas para que o jogo de futebol seja viável. A mão na bola é proibida para que o jogo de futebol aconteça como se imagina. Da mesma forma, o impedimento é punido, os laterais marcados, etc. Uma vez que as regras precisam ser aplicadas e o caráter competitivo do futebol profissional impede que se confie por demais nos atletas para a autorregulação, foi criada a figura do árbitro de futebol. Ao árbitro cabe a aplicação das regras. 

Bom, quais são essas regras? Quem diz? No atual momento da estrutura do futebol mundial quem define quais são as regras é a International Football Association Board, mais conhecida como IFAB. Fundada pelas federações de futebol da Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte e a Fifa e que é composta por representantes da chamada comunidade do futebol, como ex-treinadores e treinadoras, ex-jogadores e jogadoras, assim como ex-árbitros e ex-árbitras. Esse grupo de pessoas (a lista pode ser encontrada aqui na íntegra) acaba sendo a autoridade quando se fala de regras e aplicação das regras do futebol. Não é a FERJ, não é a FPF, não é a CBF, não é a Conmebol ou a Uefa: quem diz quais são as regras do futebol e como aplicá-las é a IFAB. Parece bobagem, mas considero importantíssimo dizer isso, pois a imensa subjetividade da aplicação das regras (não, a regra não é clara) só pode existir a partir de uma base, que é justamente o texto da entidade. 

Infelizmente esse texto e a consciência que ele existe raramente estão presentes entre os comunicadores, sejam eles jornalistas, ex-jogadores ou ex-árbitros, o que gera uma total confusão em relação aos lances que vemos a cada fim de semana. Não são raros os usos de expressões que não estão no texto da regra ou interpretações que ou estão desatualizadas ou falam que estão de acordo com "orientações", que nunca se diz de onde vieram ou quem as têm. Isso prejudica demais o entendimento do público e até dos próprios jogadores e treinadores, o que, evidentemente, não pode ser aceitável. 

Para além dos comunicadores e atuantes do jogo de futebol, me parece que há falhas importantes por parte das organizações que constituem o futebol brasileiro. A Confederação Brasileira de Futebol, por exemplo, não tem hoje no seu site o texto atualizado das regras em português. Há apenas um pdf de oito páginas com as mudanças para a temporada 22-23. O site da Federação Paulista tem a íntegra das regras, mas apenas em inglês e espanhol, que são documentos originais da IFAB (eles não publicam em português). 

Menos mal que a Associação Nacional dos Árbitros de Futebol (ANAF) se dedicou a divulgar uma versão traduzida das regras. Considero o esforço muito válido, mas de alcance restrito, uma vez que é um órgão de classe e não um veículo de grande alcance. Para quem quiser, as regras do futebol traduzidas podem ser encontradas neste link do site da ANAF.

Feita toda essa reflexão, vou deixar aqui embaixo alguns trechos da tradução da ANAF que considero importantes para futuras consultas minhas e, porque não, de outros comunicadores e do público em geral. 

Primeiro de tudo, algo que me parece muito esquecido atualmente, mas que é fundamental quando falamos de regras aplicadas ao jogo de futebol: 

"As regras do jogo não podem prever todas as possibilidades de situações, portanto, onde não há uma disposição específica na regra, a IFAB espera do árbitro que tome sua decisão de acordo com o "espírito do jogo e das regras". Isso geralmente envolve-se perguntar: "O que o futebol gostaria ou esperaria?""

O espírito da regra é fundamental na aplicação! Isso é muito importante, pois nos lembra que todas aquelas minúcias de quando é impedimento ou não é, quando é mão ou não, cartão ou não cartão devem estar sempre em consonância com esse princípio de que o jogo é o primordial. 


Os outros pontos que queria destacar aqui tem a ver com regras que são mais subjetivas e que vira e mexe dão dor de cabeça para jogadores, treinadores e comunicadores. 


REGRA 11: Impedimento

Começo pela regra 11 que é a do impedimento. O básico todo mundo sabe, mas quero colocar aqui o TEXTO que fala sobre a interferência na hora do impedimento:

Um jogador em posição de impedimento [...] só deve ser punido se participar ativamente do jogo: 

- Interferindo no jogo ao jogar ou tocar na bola, passada, ou tocado por um companheiro; ou

- Interferindo em um adversário de uma das seguintes maneiras:

• Impedindo um adversário de jogar ou de poder jogar a bola ao obstruir claramente sua linha de visão.

• Disputando a bola com o adversário

• Tentando claramente jogar a bola que se encontre próxima de si e quando essa ação causar impacto no adversário

• Praticando uma ação óbvia que tenha impacto claro na possibilidade de o adversário jogar a bola

Ou seja... A regra do jogo delimita os critérios que devem balizar a interpretação de interferência sobre o adversário. Não é o caso de falar "eu acho que sim ou eu acho que não", mas sim de fazer essas perguntas acima (o atleta obstruiu claramente a linha de visão? Disputou a bola? Tentou claramente jogar e teve impacto no adversário? etc).  


Outro pedaço da regra do impedimento que acho importante é o que trata da ação deliberada. Lembrando que a regra prevê que um atacante em posição de impedimento não deve ser punido se a ação do adversário for deliberada, ou seja, se a ação foi de "propósito", como por exemplo uma tentativa de passe que dá errado ou tentativa de drible. A exceção é quando se trata de uma "defesa" do adversário, ou seja, um bloqueio ou tentativa de afastar a bola. Nesse caso o atacante deve sim ser punido com a marcação do tiro livre indireto, pois acaba se beneficiando da posição de impedimento.

Eu ia colocar apenas o texto da ANAF, mas me parece que há um erro na tradução na medida em que colocaram defesa deliberada como "joga ou tenta jogar", quando na verdade o texto original em inglês da IFAB fala em "stop or attempts to stop" (para ou tenta parar). A diferença fundamental é que uma defesa deliberada não pode ser confundida com um atleta que domina uma bola e dá um passe, por exemplo. Isso seria joga ou tenta jogar, mas essa não é definição de defesa. Dessa forma vou colocar o texto com a minha tradução grifada no segundo ponto. Segue:

Um jogador em posição de impedimento que receber a bola jogada deliberadamente por um adversário não deve ser punido [...] a menos que tenha sido uma defesa deliberada praticada por um adversário.

Uma "defesa deliberada" se caracteriza quando um jogador deliberadamente para ou tenta parar uma bola que vai em direção ou que está muito próxima de sua meta com qualquer parte do corpo, exceto com as mãos, a menos que seja o goleiro em sua própria área de pênalti.

Em inglês: A ‘save’ is when a player stops, or attempts to stop, a ball which is going into or very close to the goal with any part of the body except the hands/arms (unless the goalkeeper within the penalty area).


Recentemente houve um esclarecimento nessa regra para abarcar o lance do gol que o Mbappé marcou contra a Espanha na final da Nations League. Vou colocar o vídeo aqui:



Na interpretação da arbitragem a ação do defensor de tentar tirar a bola foi uma ação deliberada de tentar jogar e por isso Mbappé não poderia ser punido por ter ficado com a bola e fazer o gol. A IFAB, no entanto, decidiu adicionar que esse tipo de lance deve ser encarado como defesa, uma vez que o atleta não poderia nunca ter deliberadamente dado um carrinho dessa forma para a bola ir para trás. Essa instrução veio numa circular que tem o trecho que coloco aqui abaixo em uma tradução minha:

Os seguintes critérios devem ser usados, conforme apropriado, como indicadores de que um jogador estava no controle da bola e, como resultado, ‘jogou deliberadamente’ a bola:
• A bola viajou de longe e o jogador teve uma visão clara dela
• A bola não estava se movendo rapidamente
• A direção da bola não era inesperada
• O jogador teve tempo para coordenar o movimento do corpo, ou seja, não foi um caso de instintivo alongamento ou salto, ou um movimento que alcançou contato/controle limitado
• Uma bola em movimento no chão é mais fácil de jogar do que uma bola no ar
Ou seja... Após essa orientação da circular da IFAB, o gol de Mbappé "passou a ser ilegal". Vamos agora às faltas. 


REGRA 12: Faltas 

No caso das faltas o ponto que dá mais discussão atualmente é o da mão na bola e bola na mão. Mas antes de falar desse trecho quero também esmiuçar os critérios que a IFAB avalia para que os árbitros marquem ou não faltas. Novamente, isso parece estúpido ou desnecessário, mas leiam com atenção que há algumas nuances que eu considero importantes. Diz o texto da regra 12 na tradução da ANAF:

Será concedido um tiro livre direto a favor da equipe adversária do jogador que praticar uma das seguintes ações, se consideradas pelo árbitro como imprudentes, temerárias ou com uso de força excessiva:

Fazer carga em um adversário
Saltar sobre um adversário
Dar ou tentar dar um pontapé em um adversário
Empurrar um adversário
Golpear ou tentar golpear (incluindo cabeçada) um adversário
Dar uma entrada ao disputar a bola com um adversário
Dar ou tentar dar um calço ou rasteira em um adversário. 

Notem que só são consideradas faltas SE as referidas ações forem avaliadas pelo árbitro como temerárias, imprudentes ou com força excessiva. Ou seja, não basta o toque no adversário ou ameaça de toque... É necessário que carga, salto, pontapé, empurrão, etc sejam temerários ou imprudentes ou com força excessiva! Mas quais são as definições disso? A IFAB diz e a ANAF traduz:

• Imprudência significa que um jogador demonstra falta de atenção ou consideração; ou atua sem precaução em relação a um adversário quando participa de uma disputa com ele
• Temeridade significa que um jogador não considera o risco ou as consequências para seu adversário
• Uso de força excessiva significa que um jogador excede a força necessária e assume o risco de causar lesão em um adversário
Essas definições nos lembram que o jogo de futebol PERMITE o contato físico, desde que respeitando o adversário. Respeitando significa não ser imprudente, não ser temerário e nem usar força excessiva. Esses são os critérios para a falta, ou seja, é muito mais do que o "houve o toque" ou "teve impacto" ou ainda "se não fosse isso ele faria gol". Esses termos não estão na regra. Podem estar em meio a orientações, com exemplos práticos ou coisa do tipo, mas no texto da regra não estão esses termos. Eles em si não definem falta. 

Vamos então para a parte da mão na bola e bola na mão. Lembrando que esse texto mudou muito nos últimos anos. Atualmente, na versão 22-23, diz a IFAB e a ANAF traduz que:

Nem todo toque da bola na mão/braço de um jogador é uma infração.

Será uma infração se um jogador:

• Tocar a bola com sua mão/braço deliberadamente. Por exemplo, deslocando a mão/braço em direção à bola;
• Tocar a bola com sua mão/braço quando sua mão/braço ampliar seu corpo de forma antinatural. Considera-se que um jogador amplia seu corpo de forma antinatural quando a posição de sua mão/braço não pode ser justificada pelo movimento do corpo do jogador para aquela situação específica. Ao colocar a mão/braço em tal posição, ele assume o risco.

Vejam que não existe mais na regra do jogo aquela história de braço acima da cabeça ou braço de apoio ou braço aberto. O que a regra diz é ampliar o corpo de forma antinatural e na sequência vem a definição geral do que seria isso. Em 2022 a entidade chegou a divulgar esse pdf com algumas orientações específicas de quando dar ou não dar o pênalti, mas infelizmente os links para os vídeos estão quebrados em 2023. Dá ainda assim para ter uma ideia. De forma geral, no entanto, entender o que o atleta tentou fazer e ver se o braço está "justificado" é o caminho que a IFAB indica. Aqui vale lembrar daquele raciocínio sobre o espírito do jogo:

[...] a IFAB espera do árbitro que tome sua decisão de acordo com o "espírito do jogo e das regras". Isso geralmente envolve-se perguntar: "O que o futebol gostaria ou esperaria?""
Lembremos: por que existe a regra da mão na bola? Grosso modo é para impedir que o futebol jogado com os pés seja jogado com as mãos e, de forma mais específica, que jogadores tirem vantagem da subjetividade do toque involuntário da mão na bola. Antigamente falava-se em intenção, então teoricamente era permitido que você se jogasse de qualquer jeito na bola e ela pegasse na sua mão. A parte do texto que fala em corpo aumentado de forma antinatural vem justamente para coibir mergulhos para bloqueios, ou seja, respeitando o espírito do jogo na hora de aplicar a regra (não é um toque permitido/involuntário se você se joga de qualquer maneira na bola, sem pensar onde ela vai pegar). Por outro lado, a regra não veio para coibir erros grosseiros como chutar a bola na própria mão ou acidentes como bola no chão e pega na mão. Isso a arbitragem brasileira parece ignorar atualmente. Isso me preocupa... 

Espero que esse texto sirva como referência em momentos de dúvida e também sirva como provocação sobre a nossa comunicação relativa à arbitragem e aplicação das regras pelos árbitros. A regra é subjetiva, mas deve respeitar o texto de quem as escreveu, seja no Brasil, na Espanha, Inglaterra ou Cochinchina. Claro que há interpretações mais ou menos rígidas e me parece que isso é salutar na medida em que reflete questões culturais e adaptabilidade. O que não pode acontecer, no entanto, é o mesmo esporte ter aplicações completamente distintas de uma mesma regra. Da mesma forma, quem deveria informar não pode inventar palavras ou termos para tentar justificar uma opinião sobre arbitragem. 


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

O "futebol negócio" contra o "futebol das pessoas"

Nos últimos três anos cresceu muito o meu incômodo com a mercantilização do futebol. Claro que esse fenômeno não é recente e o que vemos agora é só uma consequência de várias decisões tomadas durante décadas e décadas, mas o meu incômodo é de agora.

Está aqui agora. 
E se está aqui, infelizmente, vocês vão ter que ouvir.

Pra mim pegou muito forte na pandemia.

Até ali eu obviamente não ignorava os fundamentos capitalistas e mercantis do futebol profissional. Claro que eu estava ciente de que os clubes são gigantes econômicos, que o dinheiro precisa entrar, que gestões profissionais são importantes, que há uma indústria do futebol, yadda, yadda, blablablá. 

Foto por Marko Milivojevic de Pixnio
Foto por Marko Milivojevic de Pixnio

Ao mesmo tempo, no entanto, eu acreditava que esses aspectos eram parte de um binômio que agregava também o lado afetivo, cultural, social, simbólico e lúdico do esporte mais praticado do mundo. 

Na pandemia eu vi outra coisa. 
Ou senti outra coisa...
Principalmente por causa da postura dos clubes brasileiros... 

No meio do caos sanitário, da maior tragédia dos nossos tempos (até aqui) eu vi essas agremiações centenárias, esses polos agregadores de pessoas, essas partes importantes da construção de identidades e valores do Brasil, simplesmente virarem as costas para a maioria dos torcedores. O jogar para não perder dinheiro falou mais alto em TODOS os clubes. Não houve um que tenha, de verdade, se colocado ao lado das pessoas mais necessitadas ou se proposto a ser um canal de articulação verdadeira ou diálogo verdadeiro da sociedade com os entes públicos, como deveriam ou prometiam ser os clubes de futebol. 

Não. 

Os clubes se comportaram como os donos de restaurantes, os donos de shoppings, os donos de igrejas... Enfim! Os donos. Não os empregados ou o povo. 

O dinheiro era mais importante. 
Era mais importante jogar o Paulistão em Volta Redonda. 
Era mais importante viajar para falar com o presidente e fingir que os protocolos eram seguros. 
Era mais importante gritar gol ao lado do hospital de campanha, enquanto milhares morriam todos os dias. 
"Nós vamos deixar de jogar só porque tem gente morrendo?" chegou a perguntar o presidente de um clube gigantesco e popular. 

Pois é. 

Depois vinha o minutinho de silêncio ali e tudo bem. Umas cestas básicas doadas...

Coisas completamente inócuas dada a magnitude do tema.
Coisas totalmente desconectadas do caráter social que deveriam ter os clubes de futebol, que teoricamente são associações sem fins lucrativos que congregam pessoas, representam pessoas, que passam valores, constroem identidades, yadda,yadda,yadda,blablablá. 

Bom, mas foi só no Brasil isso? Não.

Os clubes europeus também fizeram força para voltar (acho que não tanto quanto os nossos daqui), mas lá os que representaram os donos acabaram sendo impedidos pelos governos. Sim, porque os órgãos públicos trabalharam contra a pandemia e não a favor como os nossos daqui... Isso, no entanto, é outra história... 

O fato é que, a partir desses acontecimentos, atitudes e discursos, é que meu radar ficou muito atento à contraposição entre o futebol negócio e o futebol das pessoas, como eu comecei a dizer mentalmente. 


O que eu defino como "futebol negócio", de forma bastante pejorativa, é o futebol feito para ganhar dinheiro. O futebol que tenta apenas ser um produto para vender. O futebol dos gestores, CEO's, empresários e do mundo corporativo com seus termos pomposos e promessas vazias de modernidade. O futebol que esmaga pessoas, que transforma jogadores em peças descartáveis e torcedores em meros consumidores. O futebol que tritura identidades em prol de argumentos comerciais e comercializáveis. O futebol das ditaduras e seus projetos de softpower e sportswashing. O futebol dos engravatados, dos VIPs, da Fifa, Conmebol e derivados...

Por outro lado, o que eu defino como "futebol das pessoas" é o futebol que nos fez gostar de futebol. O futebol do torcer, do emocionar, do sorrir e do chorar. O futebol que é feito para o torcedor de verdade. O futebol que busca ser símbolo de algo além de resultados esportivos e econômicos. O futebol que se preocupa com valores, começando pelos valores do esporte para a sociedade e passando por outros mais intangíveis ou subjetivos. O futebol que une. O futebol que é o único, ou um dos únicos, motivos para os mais carentes e oprimidos sorrirem. Esse é o futebol das pessoas para mim. 

Vejam... Sei que não é possível fazer do futebol profissional o futebol das pessoas apenas, mas me oponho fervorosamente contra esse movimento crescente de fazer o futebol profissional ser exclusivamente o futebol negócio. 

Esse movimento está ostensivamente disseminado entre quem efetivamente faz o futebol, com seus CEO's, métricas, lucros, parcerias e seu vocabulário excludente para fingir erudição e progresso. Está amplamente disseminado entre muitos torcedores, que celebram bilheterias, patrocínios, parceiros econômicos, premiação em eliminações, vendas de jovens jogadores e até do próprio clube. Está amplamente disseminado na imprensa esportiva, com reportagens, comentários e repercussões absolutamente acríticas ao futebol negócio e que não se preocupam com as consequências dele.

É por isso que eu faço questão de, neste texto e na minha atividade profissional diária, me opor a esse movimento e lembrar que o futebol não é apenas o futebol negócio, mas também (e principalmente) é o futebol das pessoas. Ou deveria ser...

Nesse último ponto da imprensa, aliás, me chama especialmente atenção como os jornalistas brasileiros (ou o que sobrou deles) falham em fornecer o mínimo contraponto a esse domínio do futebol negócio no dia a dia. Cito a imprensa especificamente pois sou jornalista e também porque entendo que não é papel do grupo dos poderosos e nem do torcedor ter essa visão crítica, mas é sim papel da imprensa. Ou deveria ser...

No tema das Sociedades Anônimas do Futebol, as SAF's, por exemplo, eu nem cheguei a ver qualquer problematização da coisa por nossos lados. Falam na SAF como futuro para o futebol por causa da "profissionalização", "modernização" e dinheiro envolvido, mas esquecem do que significa vender um clube e tudo o que ele representa para um grupo de empresários, um empresário qualquer, um ditador, ou um governo de marcante e flagrantes desrespeitos aos direitos humanos. 

Enfim, minúcias à parte, essa é a minha percepção e o meu incômodo sobre o que está acontecendo. Há muito mais para tratar dentro desse enorme guarda-chuva e, pelo menos neste momento, eu tenho a intenção de falar mais sobre isso. Não posso garantir, pois vira e mexe falo que vou escrever mais e acabo não cumprindo, mas... Quem sabe?  

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O que sobrou do Leeds...

Certamente tem algo muito errado quando os momentos que você mais gosta do seu time são coisas como uma queda característica do seu lateral-direito, um chute na bola que estava pronta para ser cobrada para sua área, um cântico sobre o seu ex-jogador estar gordo e uma entrada faltosa e sorridente no metido a craque do adversário. 

Pois é. É isso aí que mais tem me divertido no atual Leeds United.  


As quedas de Ayling, sempre seguidas de sorrisos, o chute de Tyler Adams após Klich segurar o braço do rival para impedir a cobrança de falta, os gritos em Elland Road para dizer que Kalvin Phillips estava gordo demais para jogar no Leeds e a entrada maldosa de Klich em Grealish, seguida de um grande sorriso por parte do polonês (lembrando os embates acalorados com o Villa na Championship 18-19) foram meus momentos favoritos do Leeds no pós-Copa.

Em dois jogos, os Whites perderam para o City por 3 a 1 em casa e empataram por 0 a 0 com o Newcastle fora. Ao todo nessas duas partidas o Leeds chutou 17 vezes e acertou o gol duas vezes, enquanto os dois rivais chutaram 42 vezes, acertando o gol em 14 oportunidades. A posse de bola contra o City foi de 31% e diante do Newcastle terminou em 41%. Nesses dois casos os números retrataram bem o que foram as partidas: o Leeds se defende, rouba a bola e perde a bola. Corre muito, mas joga muito pouco. 

Pode-se arguir que o bom momento e qualidade dos rivais explicam esses desempenhos, mas na verdade em 18 jogos oficiais da temporada 22-23, o Leeds é muito mais isso aí que qualquer outra coisa. Há pontos fora da curva como o triunfo diante do Chelsea e as boas atuações contra Tottenham e Arsenal, mas em geral, mesmo quando vence, o Leeds é isso aí. Um time que corre muito, se entrega muito, mas que não se preocupa em jogar com a bola nos pés. Não são altas trocas de passes ou posse colossal. Digo de tentar algo mesmo, além de bicar a bola pra frente. O Leeds não tenta nada senão correr de um lado para o outro para evitar o jogo do adversário. E mesmo isso o time não faz bem, haja vista as grandes chances que os rivais criam todo jogo. 

O que gera ainda mais desgosto - ao menos em mim - é ver como esse time rapidamente deixou de ser aquele que empolgava, que buscava e tentava apesar das limitações para se transformar nesse time negativo, que é o mais faltoso da Premier League (em média), que celebra empates como se fossem vitórias, que faz cera nos tiros de meta e que sequer busca se impor nos jogos.



Claro que sou suspeito para falar pois adoro os times e a figura do Bielsa, o ex-treinador, mas será que o caminho era esse mesmo? Destruir toda a identidade do clube para abraçar essa visão de futebol do americano Jesse Marsch? Se ao menos a troca tivesse valido o preço... Mas não tem sido o caso.

Sim, de fato a salvação na temporada passada veio com esse futebol aí, mas o resgate aconteceu só na última rodada porque o Burnley não fez a parte dele. Com Bielsa seria diferente? Não dá pra saber. Agora em 22-23, com quase um ano de trabalho de Marsch à frente do clube, com atletas versados no estilo Marsch/Red Bull como Adams, Aaronson e Kristensen, o Leeds tem esses desempenhos fraquíssimos e a mesma pontuação da temporada passada na décima sexta rodada. 

Sobre o estilo aliás... O modelo de jogo de Jesse Marsch é baseado nas ideias de Ralph Rangick, em especial nas ideias dele para os times da Red Bull, onde foi primeiro treinador e depois coordenador durante toda a implementação do modelo de jogo que seria empregado em todos os clubes da empresa. Marsch se orgulha - com razão - de ter feito todo o caminho dentro dos times da companhia, começando no New York, passando pelo Salzburg e chegando ao Leipzig. Na Alemanha, porém, ele foi muito mal e não soube como recolocar o time no prumo, sendo demitido por maus resultados meses depois de a equipe ter, sob o comando de Naggelsmann, ter chegado ao vice-campeonato nacional. Era de se esperar que o fracasso no Leipzig e o fato de treinar um time sem o DNA Red Bull pela primeira vez na carreira na Europa fossem engendrar algumas adaptações e mudanças, mas nesse momento elas ou não existem ou não têm êxito em campo.

Eu acompanhei muitos dos treinadores que foram da Red Bull nessa época, em especial o Roger Schmidt, de quem eu sou fã. Todos eles conseguiram fora dos times da Red Bull um futebol que também tivesse momento ofensivo no pacote. Que fosse mais do que se livrar da bola e sair correndo atrás. Aqui falo especialmente de Schmidt, mas também de Hassenhutl, Adi Hutter e Tedesco... Então não é apenas uma questão de estilo, mas de execução das ideias. 

Não vou me aprofundar mais nisso do modelo de jogo e princípios futebolísticos, mas sempre me chama a atenção esse contraste entre Marsch e Bielsa. Na personalidade os dois não poderiam ser mais diferentes, mas isso é gosto pessoal. 

Dentro de campo e vendo esse dia a dia dos dois com o mesmo clube, cada vez mais penso em Jesse como o "company man", o carreirista da empresa de energéticos. O cara entrou na empresa como estagiário, rezou a cartilha da Red Bull desde cedo, subiu na carreira e vê o futebol pelo prisma da eficiência e eficácia desse modelo de jogo que lhe foi ensinado. É como se Jesse Marsch fosse um franqueado da Red Bull, que comprou a ideia pra colocar ali no estabelecimento dele, não importa qual seja a demanda e a realidade. Quando não dá certo a culpa é dos jogadores, então ele vai lá e compra quem já jogou na Red Bull antes. 

Bielsa, por outro lado, desenvolveu uma forma única de trabalhar os jogadores tática, física e tecnicamente. É muito difícil achar alguém igual. Mesmo quem o segue faz as coisas diferentes... Para mim, Bielsa é um artesão. Esculpe, esmera, pinta, detalha e busca um produto único. Suas equipes são únicas e as peças de pouco valor se tornam pepitas. Quando não dá certo, ele segue tentando esculpi-las pois não sabe fazer outra coisa, mas às vezes os materiais e o escultor simplesmente não são bons o bastante. 

As duas maneiras podem dar certo. Eu gosto muito mais da segunda (óbvio) e tô vendo que detesto a primeira cada vez mais (ao menos essa forma aí do americano). 

Mas é isso... O que me restou foi rir do Ayling, lembrar do Klich e de todos aqueles jogadores que me fizeram tão feliz lá atrás. Que eram carismáticos, valentes e corajosos apesar das limitações. Que procuravam vencer e convencer. Ganhar e encantar.