sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

#MOT 04 - A verdadeira loucura de Bielsa


Não sabe o que é essa seção do blog? Aqui eu explico: http://dynamodudziak.blogspot.com/2021/09/mot-01-o-comeco-da-temporada-21-22.html


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A situação do Leeds na temporada é periclitante. O time precisará melhorar muito se quiser ter um fim de Premier League minimamente tranquilo. Isso está posto para todos verem e não preciso eu dizer o tamanho do risco de rebaixamento. No entanto, esse texto é para falar sobre uma ponta solta que deixei na última postagem. É um texto para falar sobre a "loucura" de Marcelo Bielsa.

Ao longo dos anos convencionou-se colocar o técnico argentino dentro da caixinha dos "personagens pitorescos" do futebol. Para tanto o apelido "El Loco", dado ainda no começo de carreira, serve bem a esse propósito. O propósito de reduzir o treinador a uma caricatura. Por causa disso, muitas e muitas vezes deixou-se de analisar o conteúdo dos trabalhos futebolísticos e das mensagens passadas pelo treinador em suas coletivas e atitudes. Escalar muitos atacantes, improvisar atletas, tentar jogar futebol contra todo e qualquer um, não olhar para o rosto dos jornalistas... Tudo isso é visto como curioso. Engraçado até.


Mesmo hoje na Premier League as transmissões preferem falar sobre o "balde" de Bielsa, o andar frenético na área técnica e a posição de cócoras a tratar do futebol propriamente dito. Isso é comunicação de massa, obviamente, mas impede muitos torcedores e analistas de sorverem tudo o que pode vir de alguém que claramente é diferente dos outros. Diferente não por marketing ou anti-marketing, não pela excentricidade, mas sim porque questiona coisas que temos como dadas e sensos comuns que talvez não façam sentido, mas que são aceitos mesmo assim.


Aí está o que eu considero a verdadeira "loucura" de Marcelo. Não são os comportamentos "distintos" e sim a capacidade de olhar para tudo o que está colocado como natural e falar "por quê?" ou então dizer que "não faz sentido".


Isso vem com ele desde o princípio da carreira. Seja na obsessão pela preparação física, pela aposta em desenvolvimento de novos jogadores no Newell's, seja nas escolhas de trabalhar no México como coordenador ou de mudar o jeito de jogar de um Vélez Sarsfield que já tinha conquistado tudo. Ficou muito claro nas mais midiáticas decisões da carreira, como barrar Riquelme da Copa de 2002 e se recusar a escalar Crespo e Batistuta juntos. Também foi assim quando ele deu uma identidade de jogo a uma amorfa seleção chilena, no Bilbao ao montar um time ofensivo e intenso num clube que tradicionalmente tem outra abordagem, no Marseille, onde pegou um grupo de desacreditados e colocou vários jogadores em condição de protagonismo (Gignac, Payet, Ayew, Mendy e outros) ou ainda no Lille, quando dispensou ídolos e atletas experientes para montar o elenco mais jovem das cinco grandes ligas da Europa (uma das razões do enorme fracasso ali).


Esse tipo de decisões aliada à vontade de ser sempre protagonista e não mudar a abordagem do time nos jogos ou da preparação física antes dos jogos gera rechaço de boa parte das pessoas. Por quê? Porque convencionou-se encarar o futebol como um jogo no qual quem se arrisca é leviano e quem procura a mediocridade "leva a sério" a disputa. Sem entrar nos detalhes da ludicidade da modalidade e dos valores que Bielsa tenta incutir nas pessoas por meio do futebol, me aferro apenas à parte mais superficial que é: Bielsa pensa diferente, desafia o senso comum e justifica o que pensa.


Quando é acusado de "cansar jogadores" diz que os números respaldam sua abordagem. Nunca os acusadores ganham essa, pois usam o "olho" para dizer que há cansaço e não a ciência que Bielsa tem a seu lado.

Quando o acusam de ser "leviano" por tentar jogar sempre, alega que os riscos de ter a bola e atacar são iguais aos de não ter a bola e defender.

Quando falam da sua predileção por um elenco menor, Bielsa justifica que ter atletas demais pode significar uma perturbação do ambiente, pois cabe ao treinador equilibrar o interesse de muitos indivíduos em um ambiente de extrema competição.

Quando falam sobre a necessidade de o time ter um plano B, Bielsa diz que prefere gastar esse tempo fazendo o plano A ser melhor executado.

Esses são só alguns dos questionamentos mais comuns. Há vários outros que fazem parte da carreira dele.

Você pode discordar do que Marcelo diz, mas acho que temos que reconhecer que os argumentos fazem sentido. O que nos leva ao estranhamento é ver que quase ninguém pensa como ele. Aí estão os fundamentos da suposta "loucura" que Marcelo Bielsa nos oferece.


Em relação ao Leeds United, que é o mote dessa seção, eu destacaria especialmente nesse momento, em que o clube briga para não cair, o tipo de visão que Marcelo tem sobre a instituição, jogadores, elenco e futebol atual. A grande crítica à gestão dele e do diretor de futebol Victor Orta nessa temporada tem sido - como já coloquei antes - a falta de contratações para dar o passo seguinte na reafirmação do Leeds como time de Premier League.

O senso comum é muito simples: um time que contrata mais, que contrata bem e que gasta dinheiro tem mais chances de se manter e melhorar. Bielsa, no entanto, oferece o outro lado da moeda: vale a pena gastar muito se não há garantia de que os novos jogadores serão melhores que aqueles que já estão lá? Porque isso precisa ser levado em conta. O Leeds não vai contratar tiros certos do mercado. Não há como trazer jogadores estabelecidos que garantem pontos aos times do topo. O campo possível então seria o de boas apostas para times de meio de tabela, como por exemplo fez o Palace ao trazer Gallagher (que interessava ao Leeds), o Leicester com a chegada de Soumaré e o Brighton com a contratação de Cucurella. Mas, ao mesmo tempo, podemos notar que o Aston Villa pagou 38 milhões de libras por Buendía e até agora o argentino não conseguiu jogar, enquanto o Wolverhampton na temporada anterior gastou 35 milhões de libras no jovem Fábio Silva e ainda aguarda o retorno. Esses são alguns poucos exemplos. Há outros bem sucedidos que mostrariam o erro do Leeds e outros malsucedidos que mostrariam teórico acerto dos Whites. Fato é que essa lógica de contratar e ganhar não é tão simples na Premier League, ainda mais em clubes que não tem tanto dinheiro para gastar.

E importante dizer também que o Leeds fez sim suas apostas. 25 milhões de libras em Daniel James, 15 milhões de euros em Junior Firpo, 30 milhões de euros em Rodrigo Moreno na temporada anterior... Nenhum deles ajudou o time o suficiente. Ao mesmo tempo, Llorente por 18 milhões de libras e Raphinha por 17 deram bons resultados. Então é simplória a lógica do "contrata mais e ganha mais". Essa é uma das razões pelas quais Bielsa segue fiel à sua filosofia de elenco curto e à espinha dorsal que o acompanha desde a primeira temporada. Evidentemente que essa lógica é muito questionada quando uma crise de lesões, uma suspensão e um caso de COVID fazem o seu time não ter 10 atletas disponíveis para enfrentar o Arsenal, o que te obriga a ter dois meninos menores de 21 anos em campo e oito jovens com menos de 20 anos no banco (um deles com 15), mas... O ponto fundamental é que Bielsa não acredita em elencos grandes e nem na contratação de jogadores e sim no desenvolvimento de jogadores dentro de um grupo curto com o aporte de jovens em momentos de necessidade. Tanto ele acredita nisso, que Bielsa também não reclama dessa situação. Pelo contrário... Os jornalistas clamam por uma reclamação ou admissão de que o time precisará ir às compras, mas Marcelo não enverga: diz que é culpa dele e não das lesões... Entende que mesmo com esse grupo pequeno, poucas contratações e lesões em profusão, era possível ter obtido mais pontos até agora.

Essa noção revolta boa parte dos torcedores e deixa abismados os jornalistas. "Como pode ser tão teimoso?". "Como ele não enxerga que esse nível de jogador não é suficiente?". "O time vai cair e ele aí com esse papinho de que a culpa é dele, mas sem mudar o jeito do time jogar!".


Eu pessoalmente também questiono muitas dessas decisões. Bielsa não é um super-homem. Não é reencarnação de Deus. Mas os erros dele me parecem quase sempre amparados numa argumentação lógica. Isso não faz deles menores ou melhores, mas nós de fora estamos sempre estamos armados com os resultados, nossos medos e ansiedades, mas quase nunca com o conhecimento e as percepções que só o dia a dia e a experiência dentro do futebol são capazes de dar.

E vale lembrar... Esses questionamentos acompanham Bielsa há muitos e muitos anos e no Leeds a maioria deles foi dinamitada pela realidade. Na temporada 18-19, Bielsa transformou Kalvin Phillips de um camisa 8 - quase 10 - em primeiro volante e até zagueiro. Deu muito certo. Na temporada 19-20 insistiu no estilo de jogo para conseguir subir e manteve Bamford titular mesmo com todo o mundo do futebol pedindo para Nketiah tomar a vaga dele. Deu muito certo. No ano passado sustentou a ideia de que Dallas seria meiocampista e colheu os frutos, com o norte-irlandês sendo eleito o melhor jogador da temporada. Já na 21-22 ele e o clube bateram o pé ao apostarem que Adam Forshaw, há dois anos sem jogar, seria importante na Premier League. Não deu outra. Sem contar todos os jovens jogadores que se tornaram opções confiáveis, como Struijk, Shackleton e agora Gelhardt, e a aposta de manter o Leeds jogando no Bielsabol em todos os momentos (às vezes bem e às vezes - muitas vezes nessa temporada - mal). Ou seja... Até aqui poucas vezes o tempo não deu razão a Bielsa.

Porém, para enfrentar e ultrapassar todos esses questionamentos foi e é necessário praticar dois conceitos que hoje estão perdidos na sociedade e em especial no futebol: PACIÊNCIA e CONVICÇÃO.


Por mais que queiramos. Por mais que vivamos. Por mais que não realizemos... O tempo das coisas não é o nosso. No futebol também não é.

Eu, na posição de torcedor, estou desesperado com o time. Eu acho que não vai dar. Eu acho que não tem como mais esses caras jogarem bem. Acho que algo diferente tem que ser feito porque se em 18 rodadas não deu certo, não vai ser agora que vai dar! Mas... Eu estou de fora. Eu estou ansioso. Eu estou com medo.

Quem está lá dentro olha o dia a dia e acredita: "vamos acertar". "O nível vai melhorar". "O que nós estamos fazendo vai garantir resultados melhores do que encher o time de novos jogadores". "Mudar agora seria pior porque perderíamos tudo que construímos".

Essa é a loucura que Bielsa nos impõe: olhar com racionalidade (e não ansiedade e medo) e admitir a existência e coerência dessa visão dele em uma sociedade em que tudo é para ontem, em que raciocínios complexos cabem em 280 caracteres e memes e na qual há uma enorme dificuldade em lidar com frustrações.


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Recentemente ao ser perguntado sobre a má fase do time e como ele encara o momento ruim da equipe, Marcelo disse: "Com fortitude, encarando o momento, assumindo responsabilidades, corrigindo os erros e não delegando aos outros a culpa".

É...

Que cara louco né?