quarta-feira, 9 de março de 2022

Redes sociais, jornalismo, esporte e a deturpação da realidade

Quem me acompanha no Twitter, no Medium e na rádio CBN sabe que um dos temas que mais me interessa é o debate sobre o papel da imprensa nos tempos atuais. Tenho para mim que, em geral, o nosso trabalho não é bem feito, seja pelos simplismos, achismos ou mesmo pelo tipo de comportamentos que temos incentivado.

Sou da opinião de que o jornalista é parte importante da construção da sociedade. É ele o profissional responsável pela mediação entre os diversos entes da esfera pública (poder público, autoridades, especialistas, locais distantes da realidade de cada indivíduo, etc). Ele faz essa mediação por meio das notícias, reportagens, entrevistas e da constante "busca pela verdade", ainda que essa seja de difícil obtenção e definição. Nesse sentido, o profissional de comunicação carrega uma responsabilidade muito grande.   

Muitos jornalistas, porém, não tem essa visão tão idealizada da profissão e acreditam que a missão deles é comunicar. É servir a quem paga ou então ser a voz de quem consome as notícias. Entendo que há base teórica para pensar assim também, como por exemplo nos coloca a tese do jornalismo estrutural. Eu, no entanto, não concordo. 

Talvez seja romântico da minha parte, mas eu penso que além de parte importante da construção da sociedade, o jornalista em muitos momentos tem até papel de educador. Não por conhecimentos próprios, mas sim por conectar conhecimentos de outros a pessoas que não os têm. A pandemia nos mostrou isso em grande medida. Não fossem os esforços desses profissionais muitas pessoas provavelmente estariam ainda achando que a Covid é uma gripezinha ou que antiparasitário mata vírus. 

Da mesma forma, dentro desse meu romantismo, acredito que a noção de quarto poder do jornalismo é verdadeira e que a sociedade "cede" sua boa fé e confiança a esses profissionais da comunicação para que eles desempenhem esse papel fundamental de fiscalizar, contestar e buscar o interesse público. Para além disso, penso que em uma sociedade cada vez mais conectada e na qual há uma enxurrada de informações e desinformações, o papel do jornalista é muito importante.  

O que eu disse aqui em cima para mim também se aplica ao papel do jornalista esportivo. Na minha visão, além de trazer os relatos sobre os jogos, as informações sobre os campeonatos e o dia a dia dos clubes e figuras importantes do esporte, cabe ainda a esse profissional levar às pessoas uma análise justa, respeitosa, condizente com a realidade e também ciosa do papel que o esporte representa dentro da sociedade. Trata-se de uma atividade econômica e que carrega inúmeros itens do entretenimento, mas que também está formada pelo aspecto lúdico e pelo alto valor cultural que tem no Brasil. 

Nos últimos anos tenho visto uma deterioração do jornalismo como um todo, em especial o esportivo. Acredito que isso tem contribuído também para uma deterioração das relações das pessoas com a realidade, o que é um campo fértil para a desinformação, manipulação e perda de credibilidade. Nesse texto queria refletir um pouco sobre isso e, de forma mais detida, sobre o jornalismo esportivo. 

As redes sociais e o "nós somos assim"

Acredito que esse movimento de deterioração do jornalismo vem ocorrendo há anos, mas que as redes sociais têm acelerado o processo. Da política à família, passando por economia, cultura, justiça e espiritualidade, as redes sociais envenenaram quase todas as nossas relações. 

Por algum tempo convencionou-se dizer que "as pessoas são assim" e que as redes são só um reflexo. Isso está errado. Nós não somos assim. São as redes sociais que nos deixam assim ao estimular e reprimir maus e bons comportamentos. Em seu livro "Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais", Jaron Lainer, pioneiro na internet, cientista da computação e um dos maiores críticos das empresas do Vale do Silício, diz:

"O principal processo que leva as redes sociais a ganharem dinheiro, embora também cause danos à sociedade, é a modificação de comportamento. Essa prática exige técnicas metódicas que mudam o padrão comportamental de animais e pessoas. Pode ser usada para tratar vícios, mas também para criá-los. Os danos à sociedade ocorrem porque o vício enlouquece as pessoas. O viciado vai perdendo gradualmente o contato com o mundo e as pessoas reais. Quando muitos estão viciados em esquemas manipuladores, o mundo fica obscuro e louco."

Ele ainda adiciona:  

"Originalmente, os alimentos eram a recompensa mais comum usada em experimentos behavioristas, embora a prática remonte a tempos antigos. Todo adestrador os utiliza, dando um petisco a um cachorro depois que o animal faz um truque. Muitos pais de crianças pequenas também fazem isso.

O prazer viciante e os padrões de recompensa no cérebro --a "pequena dose de dopamina"  integram a base do vício em redes sociais, mas não é só isso, porque a rede social também usa a punição e o reforço negativo.

Vários tipos de punição têm sido usados em laboratórios behavioristas; os choques elétricos, por exemplo, foram populares durante algum tempo. Mas, assim como as recompensas, não é necessário que as punições sejam reais ou físicas. Às vezes os experimentos negam à cobaia pontos ou símbolos.

Você está recebendo o equivalente a petiscos e choques elétricos quando usa as redes sociais"

Em linhas gerais (mais pode ser lido nesse texto meu) as Big Techs ganham dinheiro com o tempo que passamos nelas. Conteúdos divertidos e interessantes desempenham um papel nesse objetivo, mas os conteúdos que geram emoções negativas são a principal fonte de tempo gasto nas plataformas. Pode parecer um contrassenso, mas a psicologia explica e uma rápida olhada nos nossos hábitos deixa muito claro que as emoções negativas ficam e nos motivam a postar mais e passar mais tempo nas redes reagindo. 

A questão é que aquilo que se faz nas redes sociais, me parece, tem sido transposto para a realidade fora delas também. A forma como nos relacionamos com as pessoas e os temas do dia a dia na vida real têm sido cada vez mais parecida com a forma como nos relacionamos com os assuntos e os outros nas redes sociais. Simplificações, binarismos, polarização, desrespeito pelo contraditório, falta de contextualização... 

O jornalismo profissional, que poderia ser importante ferramenta no combate a esse modus operandi, na verdade me parece que tem ajudado nesse movimento de transpor a rede social para o dia a dia real. Como isso se dá? A minha percepção é de que ultimamente as empresas de comunicação - em crise há muitos anos pela total inabilidade de navegar nos novos tempos - decidiram esquecer grande parte de suas funções sociais para abraçar de vez o modus operandi das big techs, espremendo cada centavo que possa vir dessa relação promíscua entre os algoritmos e a monetização/atenção trazida pelas redes sociais.  

Assim, palavras que norteiam o bom jornalismo, como contextualização, fidelidade aos fatos, isenção (pelo menos como objetivo) e responsabilidade social têm dado lugar à busca por simplificações e engajamento a qualquer custo. Me parece que todos nós estamos vivendo isso. 

Além disso, ao usar as redes sociais como fonte de pautas e termômetro da opinião e posicionamento das pessoas sobre os temas, o jornalismo tem tornado legítimo e amplificado o que teoricamente seria "contaminado" e restrito, ajudando nessa desconexão das pessoas com a realidade. O contato entre quem noticia e quem recebe tem sido cada vez mais mediado por notícias, opiniões e análises que surgem das redes sociais e que - como já falamos - visam não às boas práticas de comunicação, de cidadania, responsabilidade social, etc e sim ao engajamento.  

Jornais que respondem às redes sociais. Que tem medo do julgamento delas. Que fazem de debates virtuais, questões reais. Que ignoram o interesse o público. Que simplificam a realidade. Que tornam o declaratório mais importante que os fatos e por aí vamos...

No jornalismo esportivo a coisa me parece ainda pior. 

O jornalismo esportivo abraça o Twitter 

Infelizmente há a noção entre os jornalistas, espectadores e gestores de que o jornalismo esportivo  configura um nicho de menor importância, que não se leva a sério e que não merece ser levado a sério. Esse julgamento de todos os envolvidos torna muito mais fácil arrombar a porteira de qualquer escrúpulo e abandonar qualquer tipo de função social ou busca pela verdade na prática diária.

No jornalismo esportivo de hoje o que importa, definitivamente, é a audiência. Qualquer audiência. Tanto faz onde, tanto faz quanto e quem...  Nesse objetivo da audiência a qualquer custo, as redes sociais se tornaram balizador e norte para o jornalismo esportivo brasileiro. Os programas, os textos, as transmissões... Todos são feitos para gerar engajamento. Por isso só há polêmicas vazias, questionamentos a tudo e todos, menosprezo, desprezo, enquetes, ironias, deboche e agressividade. Esse é o modelo das redes sociais! Emoções negativas que geram engajamento, atenção e tempo gasto. O jornalismo esportivo só transpôs para sua realidade. 

A decisão tomada em nível gerencial passou rapidamente para os profissionais e os efeitos disso são sentidos no dia a dia. Ao não termos uma imprensa esportiva comprometida com os valores que teoricamente deveriam balizá-la, automaticamente o formato das redes sociais invade a prática diária dos profissionais e, gradativamente, vamos promovendo uma desconexão com a realidade. Temos um cenário, um contexto e um dia a dia que são levados aos ouvintes, espectadores e companhia pela ótica das redes sociais... Essa é a realidade? Que realidade é essa? 

Como dito lá em cima, ao fazerem no dia a dia jornalístico o que as redes sociais já promovem (ódio, raiva, ranço, emoções negativas), os jornalistas legitimam esses comportamentos negativos e naturalizam a noção de que essa é a relação correta de pessoas com a prática esportiva. Ou que essa é a única relação possível. 

Recentemente tem sido praxe ver jornalistas que não se interessam mais em tentar buscar a verdade dos fatos, mas apenas capturam os sentimentos das redes sociais e na sequência moldam a realidade. Os resumos dos jogos fazem eco com que a torcida pensou nas redes. Os setoristas se tornaram "representantes do torcedor" nas coletivas. Os debates são construídos a partir das emoções que os usuários tiveram durante ou após o jogo. Por isso cada vez mais a derrota, erro e o "ver o outro ganhar" - conceitos que são inerentes ao esporte -  têm se tornado formas de vilipendiar a honra alheia, de vexar, de destruir...  

Recentemente coloquei no meu perfil no Twitter (incoerente eu?) que os jornalistas esportivos também precisam assumir a sua parcela de responsabilidade na onda de violência que assola o nosso futebol. Reproduzo aqui, pois acho que está bem escrito e resumido o que penso a respeito:

"Quando é que os jornalistas esportivos vão assumir a sua parte da responsabilidade na onda de violência que assola o nosso futebol? E os influencers, que ganham dinheiro com seus "rompantes" "reacts" e xingamentos? 

É muito cômodo para a classe falar "isso não é torcedor" ou "isso é caso de polícia". Fazer algo de verdade para conscientizar as pessoas sobre o que é o esporte, humanizar novamente as relações entre torcedores, baixar o calor das coisas, promover reflexões, isso ela não quer. 

Os adjetivadores profissionais, os provocadores de alta estirpe, os defensores da revolta contra tudo e todos... Esses são enormes responsáveis. Ser jornalista não deveria trazer só o "privilégio de falar pra muita gente". Deveria ser a RESPONSABILIDADE de falar pra muita gente"
As respostas em geral foram bastante positivas, mas - como eu já esperava - houve alguns colegas que não gostaram de serem responsabilizados e algumas pessoas que deram uma de pombo enxadrista para dizer que "ninguém taca bomba em ônibus por ver vídeo no Youtube". 

Obviamente que não, mas a coisa é mais sutil. Trata-se do clima de tolerância que vai se criando em torno desses temas. Não que algum formador de opinião defenda a bomba ou pedra no ônibus, mas a noção de que a revolta é justificada, que os atletas precisam "honrar a camisa", que o erro não pode ser tolerado, que a derrota traz vergonha e desonra ou que a "paixão impede a racionalidade" cria um ambiente propício para radicalismos e antagônico à cobrança por atitudes que de fato possam mudar essa realidade. Não se trata de tuítes revoltados e sim de a sociedade tomar as rédeas da situação. 

Há um movimento das pessoas comuns pedindo providências para a violência no futebol? Por que não? Existe algum movimento dos clubes para tomar providências? Por que não? 
Existe alguém da classe política empenhada nisso? Ministério Público?
Como esses entes todos são provocados a agir?
Há clima para que essas cobranças sejam feitas? De que lado estão os meios de comunicação e influencers?

Será que a violência no futebol está institucionalizada e referendada, ainda que de maneira velada?  

O que é o futebol e para quem ele é?

Para além de todas essas reflexões, termino esse texto com algo que para mim é muito importante. 

Pra começar... Três perguntas:

Por que existe o futebol? 
Por que praticamos e assistimos? 
Por que eu ou você torcemos para um time? 

Por não ser vida ou morte. Por não ser obrigatório. Por não ser essencial para nada, precisamos lembrar que o futebol existe basicamente porque nós queremos e gostamos. Ponto. 

Nós queremos e gostamos. 

Será que temos querido e gostado? 

Se não, como fazer para de novo querer e gostar?

Claro que as emoções negativas fazem parte. A decepção. A frustração. A tristeza. A raiva. Mas o futebol não foi criado para raiva, decepção e frustração. Ele não apaixona porque frustra. Ele não comove porque enerva. Embora muitos o tratem como válvula de escape, o sentido está deturpado. Porque não é escape para manifestar raiva, tristeza, frustração e violência que estão guardados. É escape porque dá a possibilidade de quem passa todo dia por provações ter acesso à glória, ao triunfo e à alegria ao ser representado dentro de campo. 

Esse é o escape! 

Será que as redes sociais, o jornalismo e as pessoas envolvidas com o futebol estão lembrando do real sentido dele? 

Encerro por aqui e convido vocês a refletirem e questionarem. 




3 comentários:

  1. Exato sobre "escape"! Vale para quem acompanha futebol, para quem pratica futebol ou outras atividades esportivas.

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  2. Excelente texto, Gabriel! Confesso que essa falta de profundidade nas análises e falsa dicotomia ganhou/é bom-perdeu/é ruim tem me feito ter cada vez menos vontade de assistir futebol. E sobre o papel da mídia, concordo em gênero, número e grau com você: Não é um privilégio falar para milhares de pessoas, é uma RESPONSABILIDADE; responsabilidade essa que muitos não compreendem por se acharem mais importantes que a própria notícia.

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  3. Texto primoroso e um convite irrecusável para uma profunda reflexão. Raramente se ouve ou ler qualquer coisa da classe jornalística de forma crítica a sua própria categoria, pois, o corporativismo é tão poderoso que a maioria prefere fingir que tá tudo bem. Mas, em sem tratando de imprensa esportiva, o declínio é ainda maior, são talk shows com um bocado de gente sem a menor condição de ocupar espaços em veículos que são grandes formadores de opiniões. É uma banalização nos níveis mais decadentes que se possa imaginar,bem típico das fúteis redes sociais. O jornalismo profissional foi tragado pelas vulgaridades das redes.

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