terça-feira, 27 de julho de 2021

Uma reflexão sobre o árbitro de vídeo e os caminhos do jogo de futebol

Dizer que o VAR voltou ao debate nas últimas semanas seria um erro: ele nunca saiu do debate!
Porém, é inegável que os erros/decisões polêmicas favoráveis aos times brasileiros na Libertadores reacenderam a chama para discussões mais calorosas sobre a ferramenta. Entendo que essa é uma boa oportunidade para escrever algumas coisas que falo há muito tempo na Rádio CBN, mas que não havia compilado antes em um só local. 

Pra começar, acho importante dizer que não é mais possível termos esse esporte sem o árbitro de vídeo. Simples assim.  E não é por uma sanha moralista que falo isso. Sei que muitos ainda lembram com carinho da época do jogo jogado sem paralisações ou discussões intermináveis sobre frames e linhas, mas eu preciso trazer à tona que essa época é muito antiga. O recorte mais recente não era sobre "erros e acertos fazem parte" e sim sobre debates como "impossível não ter visto esse impedimento!", "a bola claramente pegou na mão", "esse contato da unha do pé é pênalti",  "houve interferência externa", "o juiz estava esperando o comentarista da Globo dizer se era pênalti ou não" e "como pode todo mundo em casa ver e o árbitro não?". 

Então, o VAR chegou em um momento no qual a interferência externa estava o tempo todo no debate das pessoas. Uma época na qual os juízes só apanhavam por tudo que não viam, mesmo que fosse humanamente impossível ver. Um tempo em que canais esportivos ficavam indo com frames para frente e para trás dizendo quais os erros da rodada (essa parte não mudou muito na verdade).

Por isso sustento: não tem como não termos mais o VAR. 

Porém, o VAR não precisa ser isso que estamos vendo aqui na América do Sul e no Brasil. Na verdade, ele não é para ser assim. 

Lembremos que no próprio nome o VAR diz a que veio: Video Assistant Referee.  Ou seja: juiz assistente de vídeo. Assistente! Não principal. Não protagonista. Dizia o "slogan": mínima interferência e máximo benefício. Ele é um auxiliar de juiz! Era pra ser, no caso... Na prática ele foi pervertido aqui na América do Sul.

Hoje o mais comum é o árbitro de vídeo apitar o jogo, a ponto de o juiz de campo se isentar de marcações e mudar o próprio entendimento das jogadas quando chamado pelo pessoal da cabine. O pessoal da cabine, por sua vez, tem gostado da brincadeira e assumiu para si o papel de "marcador de infrações". A varredura em busca de coisas para marcar tem interferido diretamente no andamento das partidas e suas consequências são sentidas por todos. Consequências essas que atentam diretamente contra o espírito do jogo de futebol.  O jogo é feito para ser jogado. Pode parecer óbvio, mas o padrão sul-americano de árbitros adotou o "o jogo é feito para não ter infrações".  Vejam... Não estou defendendo um jogo sem marcações da arbitragem ou no qual a ilegalidade, a violência e a trapaça sejam premiadas. Não é isso. É apenas a lembrança do objetivo do jogo. Muda tudo quando você tem a ideia fundamental em mente. Você apita e decide buscando sempre o espírito do jogo e não a marcação de infrações.

Considero isso fundamental de ser dito: a arbitragem do futebol não foi criada para marcar coisas. Ela foi criada para garantir o jogo. Isso mesmo na era pré-VAR. Essa ideia precisa ser retomada urgentemente! Só ela vai nos ajudar a reconquistar o significado do árbitro de vídeo. Somente com esse entendimento conseguiremos ter o VAR no lugar dele. Um lugar que aqui no Brasil foi atirado para escanteio por, na minha opinião, algumas razões:

- A falsa promessa de que o VAR resolveria todos os problemas da arbitragem: isso gerou a expectativa de que máxima intervenção seria máximo benefício, totalmente o contrário do "slogan" que citamos ali em cima.

- A conveniência da terceirização de responsabilidades: paixão dos envolvidos com o esporte número 1 do país, a arbitragem já ganhava todos os holofotes nos insucessos dos dirigentes, treinadores e jogadores. Isso segue com o vídeo, o que, na prática, gera e alimenta a responsabilização exagerada dos juízes, promovendo a expectativa e a cobrança de que marcar muitas coisas é o caminho a seguir. Fora as irritantes pressões às quais os árbitros estão sujeitos durante os 90 minutos de partida. Reclamações, simulações, brigas e desrespeito à autoridade do juiz são praxe e isso prejudica a turma do campo. 

- O escudo que o VAR oferece para a equipe de arbitragem de campo: tornou-se comum ver os juízes abdicando de marcações no campo para aguardar o vídeo. Além da falta de confiança gerada também pelas razões acima, há ainda um quê de conveniência em terceirizar a "bronca". Diz-se do manual informal da arbitragem: "mão na orelha, a culpa é do VAR e eu não posso fazer nada". 

- O péssimo ambiente gerado por jornalistas, fãs, torcedores e redes sociais: um pouco parecido com a primeira e segunda razões, mas acho que é necessário frisar que o clima de "não pode errar", "por que errou?", bem como a sugestão de que as linhas são erradas e que os frames são outros, ajuda a pressionar o VAR a ser o que ele não deveria e nunca poderá ser. 

Bom, expliquei acima as razões pelas quais eu acredito que o VAR foi colocado como protagonista na América do Sul e principalmente no Brasil. Esse raciocínio automaticamente gera a pergunta: mas não é assim em todo o lugar? Resposta: Não é.

Acompanho bastante futebol europeu e posso afirmar categoricamente que o VAR, com raras exceções, atua como deveria no Velho Continente. Por isso são poucas as paradas de mais de dois minutos e são várias as vezes em que o árbitro de campo vê o lance e marca com convicção, sem a necessidade de ficar aguardando a opinião de outros. A Euro, que foi acompanhada por muito mais gente, está aí para provar que o VAR pode ser bom. Pênalti no Sterling à parte e um ou outro vermelho controversos, entendo que o árbitro de vídeo do torneio continental foi rápido, eficaz e garantidor da qualidade do jogo. Esse deve ser o exemplo a ser seguido. No entanto, isso não quer dizer que ele não possa ser melhorado e que as regras não possam ser aprimoradas. 

Sim: as regras precisam ser aprimoradas nessa nova era de frames, linhas e pausas. Queria falar disso também. 

Para tanto, considero que o pênalti marcado para o Palmeiras contra a Universidad Católica no jogo de ida da Libertadores seja um excelente exemplo. No lance, Deyverson aproveita um rebote de falta para a área para cruzar da linha de fundo. O marcador Lanaro vira de costas para a bola. A bola bate no joelho dele e no braço, que está aberto. O VAR marca pênalti. 



Muita discussão no campo e nas redes. Na comunicação do VAR, liberada pela Conmebol no dia seguinte, o árbitro de vídeo diz que "é uma mão de bloqueio" e "antinatural". Os termos estão corretos e a discussão é justamente essa (já volto a isso), principalmente o último ponto: o antinatural. No entanto, no dia do jogo as redes sociais foram inundadas de discussões sobre orientações da Conmebol para bola na mão e mão na bola. Trata-se de um documento que a entidade divulgou dois dias antes e que teoricamente serviria de balizador para decisões. Nele muita gente viu a semelhança entre a mão do Lanaro e a mão do De Ligt, que está neste material da Conmebol como mão sancionável.




Mais do que dizer "em ambos os casos bate no corpo e na mão", porém, o que tem que ser discutido é o natural e anti-natural. Essa é a mais recente orientação da IFAB, a chamada International Board, que é a detentora das regras e balizas para a aplicação delas. Nas orientações para a temporada 21-22 o texto de mão na bola e bola na mão diz que: 

"Nem todo toque de mão ou braço é falta. É falta se o jogador:

- deliberadamente toca com a mão na bola ou braço, por exemplo, movendo a mão ou braço em direção à bola. 
-Toca a bola com a mão ou braço fazendo o corpo maior de forma antinatural. Considera-se que um jogador tornou o corpo maior de forma antinatural quando a posição do braço ou mão não é uma consequência ou, não está justificada, pelo movimento do corpo naquela situação específica".

Diz ainda o texto da IFAB na parte de explicações sobre a mudança no texto: "Os árbitros devem julgar a "validade" da posição do braço ou mão em relação ao que o jogador está fazendo naquela situação particular".

Bom, é justamente o contrário do que a Conmebol fez com esse documento em que dá "exemplos do que marcar". É o contrário porque a IFAB fala em árbitros julgarem a validade e não em recorrerem a uma tabela do que marcar ou não.  

Temos aqui uma questão muito importante para os rumos do futebol nos próximos anos e para a nossa situação no Brasil. Percebam que o texto tira ainda mais a objetividade da regra, que era aquela série de orientações como "corpo maior", mão acima do ombro, mão de apoio, tempo de reação, "ao lado do corpo" ou "não é falta se bate no corpo antes", etc. Agora o texto é substancialmente subjetivo: "é natural ou antinatural?" "é justificado pelo movimento que o atleta tentou fazer naquele momento?". 


Espero que faça sentido o que estou tentando argumentar. Em suma: o caminho para termos um VAR bom e um esporte justo é justamente o contrário do que estamos buscando no Brasil. O caminho é sim a subjetividade. Baseada por critérios, evidentemente, mas sem o caderninho de regras de quando marcar ou não marcar. E quais critérios devem balizar a subjetividade inerente e buscada? O JOGO de futebol.

Então se estamos vendo no Brasil essa busca de marcar tudo, se no Brasil estamos presenciando o VAR caça-pênalti, o vídeo intervencionista, o protagonista na cabine e não no campo, o mundo do futebol por sua vez tem se conscientizado de que o caminho para melhorar o jogo não é esse. O caminho é defender o jogo. É ter subjetividade balizada pelo jogo. O que é melhor para o jogo? O que beneficia os protagonistas? 

Para além da orientação da IFAB para mão na bola e bola na mão, destaco outras medidas que vem sendo tomadas na Europa como aumentar a grossura das linhas de impedimento no vídeo (o que volta a colocar o atacante em vantagem), implementar  um VAR dedicado a impedimentos (para impedir pausas longas) e definir o que é a axila para fins de impedimento (o intuito é evitar lances bizonhos como o abaixo).


Para além das minúcias e discussões sobre o que mudar e como mudar para retomarmos o jogo, deixo aqui a reflexão do técnico e guru Marcelo Bielsa quando perguntado sobre o VAR:

"Eu não sou a pessoa mais indicada para sugerir algo, mas me parece que, se as regras se simplificassem e não ficassem tão distantes da percepção humana, todos estaríamos agradecidos. Então, o que eu imagino, e não sei como seria possível, porque eu não entendo desse tema, é que não devemos admitir a injustiça ou o erro e a falha, mas sim flexibilizar a norma para que não seja necessária tanta precisão meticulosa para tomar a decisão adequada. Mais que flexível, deve ser mais simples. Que deixe menos margem de dúvidas e assim tenhamos menos intervenções da tecnologia. A luta pela precisão sabe-se quando começa, mas não como termina. São mais sábios os que simplificam do que os que usam muitas ferramentas para decidir. Em resumo: eu gostaria de um regulamento no qual quando há uma mão na bola todos saibamos que é uma mão na bola. E quando há um impedimento, todos saibamos que foi um impedimento."


Brilhante! É exatamente disso que precisamos! 

Não precisamos de mais precisão. Precisamos recuperar o espírito do jogo. Não queremos a injustiça, mas também não queremos um jogo artificial de paradas, linhas, axilas e frames. Achar esse meio termo não é fácil, mas tem que ser a busca de todos que  amam esse esporte. 






















Um comentário:

  1. Gabriel, que belo artigo. O futebol é emoção, uma expressão humana. Claro que o lado econômico do esporte deve ser considerado, no entanto o futebol deve resgatar sua essência romântica. Acredito também que a arbitragem deva se reencontrar em garantir o jogo. Parabéns.

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