sexta-feira, 3 de março de 2023

A Copa do Brasil sob a ótica e ética do futebol negócio

Foi um dia emblemático para o momento vivido pelo futebol brasileiro fora das quatro linhas.

Na Copa do Brasil, apregoada como o torneio mais democrático do país, o Trem do Amapá jogou em Brasília para milhares de vascaínos, enquanto no Distrito Federal o Ceilândia jogou no estádio Sereijão apenas para torcedores do adversário, o Santos. 

Na prévia dos dois confrontos algumas vozes isoladas citaram o absurdo das situações que veríamos em poucas horas. Já no desfecho dos dois jogos, o silêncio imperou... Ou ao menos foi essa minha percepção. 

O que sim eu vi e ouvi sobre esses dois jogos foram matérias sobre premiação, valores e quanto é importante para o planejamento das equipes vencedoras seguir recebendo dinheiro. Não é novidade. Essa temática está sempre presente. O incômodo com as aberrações do regulamento é que parece cada vez mais ausente. O que isso significa?

Para mim significa que não há indignação com um time jogar fora de casa na Copa do Brasil, mesmo tendo mando de campo. Para mim significa que poucos acham fora de lugar que uma equipe jogue em seu estado/distrito com torcedores do adversário. Para mim quer dizer que sequer existe o questionamento ao fato de um torneio que se diz democrático e que tem como atrativo trazer equipes de todo o país na prática ser um palco de domínio e protagonismo dos grandes (mais um). Para mim diz ainda que, mais importante do que qualquer aspecto esportivo, emocional, cultural e simbólico, é quanto se paga e quanto se recebe por entrar em campo. 

Em resumo: para mim o que vimos e a total falta de repercussão do que vimos na quinta-feira é mais um episódio que reafirma a prevalência do futebol negócio contra o futebol das pessoas. Neste post aqui expliquei o que eu chamo de futebol negócio e o que eu chamo de futebol das pessoas e porque isso me chama a atenção e me incomoda. 


Ljupco/istockphoto.com
Crédito da foto: Ljupco/istockphoto.com


Vou explicitar aqui porque esses dois casos específicos conversam com as ideias que apresentei no outro texto. Primeiro é necessário frisar que no caso do Trem, não se trata de uma mera venda de mando de campo. Na verdade o Trem foi impedido de jogar no Estádio Zerão, em Macapá, por falta de laudos que atestassem a segurança e salubridade do local. Nas matérias que eu li fala-se em perda do prazo, o que me leva a pensar se era tão importante para a direção quanto eu imagino que deveria ser jogar em casa diante do próprio torcedor na Copa do Brasil. Eu, no entanto, não posso opinar muito mais que isso. Estádio tem condição? Não tem condição? Quem é que deveria (não quem deve) dizer isso? Sei que o time jogou a última Série D nesse estádio, isso sim! 

Bom, impossibilitado de jogar no Amapá, cabia ao Trem escolher outro lugar para mandar o jogo. E a escolha foi por Brasília, pelo estádio Mané Garrincha, este paraíso do futebol negócio! Construída com dinheiro público em um local de pouca tradição futebolística, a arena moderna faz a vida de empresários e dirigentes de clubes de futebol por meio do escambo entre despesas custeadas e bilheterias arrecadadas. Em Brasília o Trem jogou contra o Vasco com torcedores do Vasco e está tudo naturalizado.

"Fazer o quê? O time do Amapá não tem condição"
"Que chato, mas veja, pelo menos ganharam um dinheiro!"

Mediante essa situação e cenário, fico imaginando o torcedor do Trem.. A vida dele será para sempre a disputa das divisões inferiores apenas? Ir a jogos da quarta divisão e só? Já pensaram se o Trem engrossasse a partida e vencesse? Eles teriam sido privados dessa experiência histórica?! Por quê? E por quem? 

Já no caso do Ceilândia e Santos houve uma troca de mando mediante as ações de diferentes atores. Primeiro a detentora da transmissão que não aceitou que o Ceilândia mandasse o jogo no estádio Abadião. Depois o clube levou a partida para Taguatinga, no estádio Sereijão, e aí a coisa fica nebulosa. O clube abriu venda de ingressos com 100 reais a inteira. Depois disse que foi "comunicado pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal" que seria necessária a adoção de torcida única no estádio por questões de laudo técnico do estádio. A partir daí então, como os santistas já tinham comprado 80% dos ingressos (segundo o Ceilândia) o clube "teve que adotar torcida única do Santos". 

Eu não consigo apurar essa situação corretamente. Não sei se o clube fez tudo o que podia para ter o próprio torcedor no estádio e nem se a Secretaria de Segurança é que foi infeliz na decisão. Não sei avaliar laudos de segurança. Sei sim o seguinte: tamanho absurdo está naturalizado dentro dessa nossa lógica de futebol. 

"Ah, é o regulamento..."
"Ah, é a detentora dos direitos..." 
"Que chato, mas pelo menos eles ganharam o dinheiro dos santistas!"

A questão é prévia!

Não é o regulamento. Não é a detentora. Não é o laudo, não é o Vasco, não é o Amapá e não é o Mané Garrincha. Tudo isso é definido por quem tem a competência para definir. Ou melhor... A quem foi dada a competência para definir! Se você muda a premissa básica você busca as soluções e as ferramentas para garantir que o seu objetivo seja alcançado.

Vou dar exemplos sobre essas duas situações: 

- Assim que o Trem do Amapá se classificasse para a Copa do Brasil, diretoria do clube, CBF, Federação do Amapá, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Vigilância Sanitária estariam de prontidão para fazer os preparativos e garantir que o estádio da capital estivesse em condições para receber qualquer partida no mês de fevereiro. Se por acaso houvesse algum problema, CBF, Federação do Amapá e clube se prontificariam a NÃO realizar o jogo até que fossem corrigidos os problemas. 

- O Ceilândia tem o direito de jogar em seu estádio. Se a plataforma/detentora não tem condições de transmitir o jogo em determinado local, vale sentar à mesa e serem discutidas possibilidades. Se o Ceilândia vai para outro estádio, deve valer a divisão do estádio entre mandantes e visitantes e não pode existir cota ou falta de cota para impor torcida única. A polícia militar ou a segurança do estádio (stewards) precisam garantir que as duas torcidas possam ver o jogo, independentemente de 80% para um lado ou outro. Não se trata de laudo do estádio e sim de trabalho de segurança para garantir o evento entre duas torcidas que não são rivais. Isso é o normal de qualquer evento. Mas é preciso lutar por ele e não usar esse jogo como oportunidade para encher o estádio de santistas  a preços caros. 

E aí? Riu da minha cara né? Não te culpo. Tudo o que eu falei soa impossível e parece digno de escárnio. Mas pense comigo... Se o paradigma fundamental fosse mudado, seria tão absurdo assim? Se o fundamental não fosse o que está aí, mas sim o que o futebol das pessoas gostaria, seria tão estúpido? 

Esse é o meu ponto central e que - acho - algumas pessoas não entenderam ou fingem não entender. Cheguei a ser ironizado no Twitter por falar que essa situação do Ceilândia era fruto do futebol negócio. Me disseram que era justamente o contrário, pois o futebol negócio preza por "estádios cheios e experiências completas" e que, portanto, não é culpa do futebol negócio que vivamos esse tipo de absurdo e sim culpa das pessoas, como dirigentes, secretarias de segurança pública, etc. 

Pode ser que os que prezam pelo EVENTO pensem nessa parte de "estádio cheio, com povos em comunhão e experiências lindas", mas eu digo que o NEGÓCIO não pensa assim. O NEGÓCIO é contrário às pessoas. É a favor dos clientes e contra os torcedores. Preza pelos interesses dos empresários e não dos apaixonados e praticantes do futebol. Luta pela aniquilação das diferenças e homogeneização das experiências e torceres e não pela identidade, simbolismo e pertencimento que advém do futebol. O negócio vive do futebol e não para o futebol. 

O NEGÓCIO é prévio ao EVENTO. É o NEGÓCIO que diz que mais importante do que jogar em casa é jogar em uma casa que possa ser transmitida pela detentora dos direitos. É o NEGÓCIO que diz que o estádio precisa ter capacidade x ou y a partir da fase tal, agindo contra o senso de comunidade dos clubes mais humildes. É o NEGÓCIO que permite que preços de ingressos e polícia militar decidam quantos e quais torcedores vão participar do espetáculo do futebol. 

Aliás... É o NEGÓCIO da Copa do Brasil que determina o regulamento. É ele que diz que os times de menor ranking vão jogar em casa tendo a obrigação de ganhar. Sem meias palavras, para mim o subtexto do regulamento é só um: o time pequeno recebe o grande (ou vende o mando) para ganhar dinheiro vendendo ingressos para a torcida adversária e na sequência já se despede do torneio deixando a disputa para quem realmente importa ao futebol negócio. 

Aí vem as piadinhas do PIX, a premiação e o "quanto tal" deixou de faturar e seguimos em frente. Sem grandes questionamentos, sem grandes debates, mas sempre exaltando O MAIS DEMOCRÁTICO TORNEIO DO PAÍS. Pode até ser... Mas aí é aquela democracia bem brasileira que nós já conhecemos: uma elite dominante (econômica/política) pisando em cima do resto. 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Árbitros, arbitragens e a letra (não tão) fria da regra

A véspera do início do Campeonato Paulista 2023 é um bom momento para eu registrar aqui algumas ponderações sobre o tema arbitragem. Uma coisa que me incomoda muito é a incapacidade da imprensa de informar o público sobre quais são e como funcionam as regras do futebol. Há muito desconhecimento, um bocado de preguiça e, ao que me parece, uma boa dose de equívoco na comunicação por parte das pessoas que transmitem futebol. Claro, há profissionais de arbitragem muito ruins também dentro dos gramados, o que adiciona uma imprevisibilidade e dificuldade ainda maior para quem acompanha.


Елена Рыбакова, CC BY-SA 3.0 GFDL, via Wikimedia Commons
Sergei Ivanov apitando o jogo entre FC Lokomotiv Moscow e FC Tom Tomsk
(Crédito: 
Елена Рыбакова, CC BY-SA 3.0 GFDL, via Wikimedia Commons)

Como de costume, quando trato de um tema eu busco atestar o óbvio primeiro para depois ir construindo o raciocínio. Dito isso, lembremos do básico: o futebol profissional tem regras estabelecidas para que o jogo possa acontecer. As faltas são marcadas para que o jogo de futebol seja viável. A mão na bola é proibida para que o jogo de futebol aconteça como se imagina. Da mesma forma, o impedimento é punido, os laterais marcados, etc. Uma vez que as regras precisam ser aplicadas e o caráter competitivo do futebol profissional impede que se confie por demais nos atletas para a autorregulação, foi criada a figura do árbitro de futebol. Ao árbitro cabe a aplicação das regras. 

Bom, quais são essas regras? Quem diz? No atual momento da estrutura do futebol mundial quem define quais são as regras é a International Football Association Board, mais conhecida como IFAB. Fundada pelas federações de futebol da Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte e a Fifa e que é composta por representantes da chamada comunidade do futebol, como ex-treinadores e treinadoras, ex-jogadores e jogadoras, assim como ex-árbitros e ex-árbitras. Esse grupo de pessoas (a lista pode ser encontrada aqui na íntegra) acaba sendo a autoridade quando se fala de regras e aplicação das regras do futebol. Não é a FERJ, não é a FPF, não é a CBF, não é a Conmebol ou a Uefa: quem diz quais são as regras do futebol e como aplicá-las é a IFAB. Parece bobagem, mas considero importantíssimo dizer isso, pois a imensa subjetividade da aplicação das regras (não, a regra não é clara) só pode existir a partir de uma base, que é justamente o texto da entidade. 

Infelizmente esse texto e a consciência que ele existe raramente estão presentes entre os comunicadores, sejam eles jornalistas, ex-jogadores ou ex-árbitros, o que gera uma total confusão em relação aos lances que vemos a cada fim de semana. Não são raros os usos de expressões que não estão no texto da regra ou interpretações que ou estão desatualizadas ou falam que estão de acordo com "orientações", que nunca se diz de onde vieram ou quem as têm. Isso prejudica demais o entendimento do público e até dos próprios jogadores e treinadores, o que, evidentemente, não pode ser aceitável. 

Para além dos comunicadores e atuantes do jogo de futebol, me parece que há falhas importantes por parte das organizações que constituem o futebol brasileiro. A Confederação Brasileira de Futebol, por exemplo, não tem hoje no seu site o texto atualizado das regras em português. Há apenas um pdf de oito páginas com as mudanças para a temporada 22-23. O site da Federação Paulista tem a íntegra das regras, mas apenas em inglês e espanhol, que são documentos originais da IFAB (eles não publicam em português). 

Menos mal que a Associação Nacional dos Árbitros de Futebol (ANAF) se dedicou a divulgar uma versão traduzida das regras. Considero o esforço muito válido, mas de alcance restrito, uma vez que é um órgão de classe e não um veículo de grande alcance. Para quem quiser, as regras do futebol traduzidas podem ser encontradas neste link do site da ANAF.

Feita toda essa reflexão, vou deixar aqui embaixo alguns trechos da tradução da ANAF que considero importantes para futuras consultas minhas e, porque não, de outros comunicadores e do público em geral. 

Primeiro de tudo, algo que me parece muito esquecido atualmente, mas que é fundamental quando falamos de regras aplicadas ao jogo de futebol: 

"As regras do jogo não podem prever todas as possibilidades de situações, portanto, onde não há uma disposição específica na regra, a IFAB espera do árbitro que tome sua decisão de acordo com o "espírito do jogo e das regras". Isso geralmente envolve-se perguntar: "O que o futebol gostaria ou esperaria?""

O espírito da regra é fundamental na aplicação! Isso é muito importante, pois nos lembra que todas aquelas minúcias de quando é impedimento ou não é, quando é mão ou não, cartão ou não cartão devem estar sempre em consonância com esse princípio de que o jogo é o primordial. 


Os outros pontos que queria destacar aqui tem a ver com regras que são mais subjetivas e que vira e mexe dão dor de cabeça para jogadores, treinadores e comunicadores. 


REGRA 11: Impedimento

Começo pela regra 11 que é a do impedimento. O básico todo mundo sabe, mas quero colocar aqui o TEXTO que fala sobre a interferência na hora do impedimento:

Um jogador em posição de impedimento [...] só deve ser punido se participar ativamente do jogo: 

- Interferindo no jogo ao jogar ou tocar na bola, passada, ou tocado por um companheiro; ou

- Interferindo em um adversário de uma das seguintes maneiras:

• Impedindo um adversário de jogar ou de poder jogar a bola ao obstruir claramente sua linha de visão.

• Disputando a bola com o adversário

• Tentando claramente jogar a bola que se encontre próxima de si e quando essa ação causar impacto no adversário

• Praticando uma ação óbvia que tenha impacto claro na possibilidade de o adversário jogar a bola

Ou seja... A regra do jogo delimita os critérios que devem balizar a interpretação de interferência sobre o adversário. Não é o caso de falar "eu acho que sim ou eu acho que não", mas sim de fazer essas perguntas acima (o atleta obstruiu claramente a linha de visão? Disputou a bola? Tentou claramente jogar e teve impacto no adversário? etc).  


Outro pedaço da regra do impedimento que acho importante é o que trata da ação deliberada. Lembrando que a regra prevê que um atacante em posição de impedimento não deve ser punido se a ação do adversário for deliberada, ou seja, se a ação foi de "propósito", como por exemplo uma tentativa de passe que dá errado ou tentativa de drible. A exceção é quando se trata de uma "defesa" do adversário, ou seja, um bloqueio ou tentativa de afastar a bola. Nesse caso o atacante deve sim ser punido com a marcação do tiro livre indireto, pois acaba se beneficiando da posição de impedimento.

Eu ia colocar apenas o texto da ANAF, mas me parece que há um erro na tradução na medida em que colocaram defesa deliberada como "joga ou tenta jogar", quando na verdade o texto original em inglês da IFAB fala em "stop or attempts to stop" (para ou tenta parar). A diferença fundamental é que uma defesa deliberada não pode ser confundida com um atleta que domina uma bola e dá um passe, por exemplo. Isso seria joga ou tenta jogar, mas essa não é definição de defesa. Dessa forma vou colocar o texto com a minha tradução grifada no segundo ponto. Segue:

Um jogador em posição de impedimento que receber a bola jogada deliberadamente por um adversário não deve ser punido [...] a menos que tenha sido uma defesa deliberada praticada por um adversário.

Uma "defesa deliberada" se caracteriza quando um jogador deliberadamente para ou tenta parar uma bola que vai em direção ou que está muito próxima de sua meta com qualquer parte do corpo, exceto com as mãos, a menos que seja o goleiro em sua própria área de pênalti.

Em inglês: A ‘save’ is when a player stops, or attempts to stop, a ball which is going into or very close to the goal with any part of the body except the hands/arms (unless the goalkeeper within the penalty area).


Recentemente houve um esclarecimento nessa regra para abarcar o lance do gol que o Mbappé marcou contra a Espanha na final da Nations League. Vou colocar o vídeo aqui:



Na interpretação da arbitragem a ação do defensor de tentar tirar a bola foi uma ação deliberada de tentar jogar e por isso Mbappé não poderia ser punido por ter ficado com a bola e fazer o gol. A IFAB, no entanto, decidiu adicionar que esse tipo de lance deve ser encarado como defesa, uma vez que o atleta não poderia nunca ter deliberadamente dado um carrinho dessa forma para a bola ir para trás. Essa instrução veio numa circular que tem o trecho que coloco aqui abaixo em uma tradução minha:

Os seguintes critérios devem ser usados, conforme apropriado, como indicadores de que um jogador estava no controle da bola e, como resultado, ‘jogou deliberadamente’ a bola:
• A bola viajou de longe e o jogador teve uma visão clara dela
• A bola não estava se movendo rapidamente
• A direção da bola não era inesperada
• O jogador teve tempo para coordenar o movimento do corpo, ou seja, não foi um caso de instintivo alongamento ou salto, ou um movimento que alcançou contato/controle limitado
• Uma bola em movimento no chão é mais fácil de jogar do que uma bola no ar
Ou seja... Após essa orientação da circular da IFAB, o gol de Mbappé "passou a ser ilegal". Vamos agora às faltas. 


REGRA 12: Faltas 

No caso das faltas o ponto que dá mais discussão atualmente é o da mão na bola e bola na mão. Mas antes de falar desse trecho quero também esmiuçar os critérios que a IFAB avalia para que os árbitros marquem ou não faltas. Novamente, isso parece estúpido ou desnecessário, mas leiam com atenção que há algumas nuances que eu considero importantes. Diz o texto da regra 12 na tradução da ANAF:

Será concedido um tiro livre direto a favor da equipe adversária do jogador que praticar uma das seguintes ações, se consideradas pelo árbitro como imprudentes, temerárias ou com uso de força excessiva:

Fazer carga em um adversário
Saltar sobre um adversário
Dar ou tentar dar um pontapé em um adversário
Empurrar um adversário
Golpear ou tentar golpear (incluindo cabeçada) um adversário
Dar uma entrada ao disputar a bola com um adversário
Dar ou tentar dar um calço ou rasteira em um adversário. 

Notem que só são consideradas faltas SE as referidas ações forem avaliadas pelo árbitro como temerárias, imprudentes ou com força excessiva. Ou seja, não basta o toque no adversário ou ameaça de toque... É necessário que carga, salto, pontapé, empurrão, etc sejam temerários ou imprudentes ou com força excessiva! Mas quais são as definições disso? A IFAB diz e a ANAF traduz:

• Imprudência significa que um jogador demonstra falta de atenção ou consideração; ou atua sem precaução em relação a um adversário quando participa de uma disputa com ele
• Temeridade significa que um jogador não considera o risco ou as consequências para seu adversário
• Uso de força excessiva significa que um jogador excede a força necessária e assume o risco de causar lesão em um adversário
Essas definições nos lembram que o jogo de futebol PERMITE o contato físico, desde que respeitando o adversário. Respeitando significa não ser imprudente, não ser temerário e nem usar força excessiva. Esses são os critérios para a falta, ou seja, é muito mais do que o "houve o toque" ou "teve impacto" ou ainda "se não fosse isso ele faria gol". Esses termos não estão na regra. Podem estar em meio a orientações, com exemplos práticos ou coisa do tipo, mas no texto da regra não estão esses termos. Eles em si não definem falta. 

Vamos então para a parte da mão na bola e bola na mão. Lembrando que esse texto mudou muito nos últimos anos. Atualmente, na versão 22-23, diz a IFAB e a ANAF traduz que:

Nem todo toque da bola na mão/braço de um jogador é uma infração.

Será uma infração se um jogador:

• Tocar a bola com sua mão/braço deliberadamente. Por exemplo, deslocando a mão/braço em direção à bola;
• Tocar a bola com sua mão/braço quando sua mão/braço ampliar seu corpo de forma antinatural. Considera-se que um jogador amplia seu corpo de forma antinatural quando a posição de sua mão/braço não pode ser justificada pelo movimento do corpo do jogador para aquela situação específica. Ao colocar a mão/braço em tal posição, ele assume o risco.

Vejam que não existe mais na regra do jogo aquela história de braço acima da cabeça ou braço de apoio ou braço aberto. O que a regra diz é ampliar o corpo de forma antinatural e na sequência vem a definição geral do que seria isso. Em 2022 a entidade chegou a divulgar esse pdf com algumas orientações específicas de quando dar ou não dar o pênalti, mas infelizmente os links para os vídeos estão quebrados em 2023. Dá ainda assim para ter uma ideia. De forma geral, no entanto, entender o que o atleta tentou fazer e ver se o braço está "justificado" é o caminho que a IFAB indica. Aqui vale lembrar daquele raciocínio sobre o espírito do jogo:

[...] a IFAB espera do árbitro que tome sua decisão de acordo com o "espírito do jogo e das regras". Isso geralmente envolve-se perguntar: "O que o futebol gostaria ou esperaria?""
Lembremos: por que existe a regra da mão na bola? Grosso modo é para impedir que o futebol jogado com os pés seja jogado com as mãos e, de forma mais específica, que jogadores tirem vantagem da subjetividade do toque involuntário da mão na bola. Antigamente falava-se em intenção, então teoricamente era permitido que você se jogasse de qualquer jeito na bola e ela pegasse na sua mão. A parte do texto que fala em corpo aumentado de forma antinatural vem justamente para coibir mergulhos para bloqueios, ou seja, respeitando o espírito do jogo na hora de aplicar a regra (não é um toque permitido/involuntário se você se joga de qualquer maneira na bola, sem pensar onde ela vai pegar). Por outro lado, a regra não veio para coibir erros grosseiros como chutar a bola na própria mão ou acidentes como bola no chão e pega na mão. Isso a arbitragem brasileira parece ignorar atualmente. Isso me preocupa... 

Espero que esse texto sirva como referência em momentos de dúvida e também sirva como provocação sobre a nossa comunicação relativa à arbitragem e aplicação das regras pelos árbitros. A regra é subjetiva, mas deve respeitar o texto de quem as escreveu, seja no Brasil, na Espanha, Inglaterra ou Cochinchina. Claro que há interpretações mais ou menos rígidas e me parece que isso é salutar na medida em que reflete questões culturais e adaptabilidade. O que não pode acontecer, no entanto, é o mesmo esporte ter aplicações completamente distintas de uma mesma regra. Da mesma forma, quem deveria informar não pode inventar palavras ou termos para tentar justificar uma opinião sobre arbitragem. 


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

O "futebol negócio" contra o "futebol das pessoas"

Nos últimos três anos cresceu muito o meu incômodo com a mercantilização do futebol. Claro que esse fenômeno não é recente e o que vemos agora é só uma consequência de várias decisões tomadas durante décadas e décadas, mas o meu incômodo é de agora.

Está aqui agora. 
E se está aqui, infelizmente, vocês vão ter que ouvir.

Pra mim pegou muito forte na pandemia.

Até ali eu obviamente não ignorava os fundamentos capitalistas e mercantis do futebol profissional. Claro que eu estava ciente de que os clubes são gigantes econômicos, que o dinheiro precisa entrar, que gestões profissionais são importantes, que há uma indústria do futebol, yadda, yadda, blablablá. 

Foto por Marko Milivojevic de Pixnio
Foto por Marko Milivojevic de Pixnio

Ao mesmo tempo, no entanto, eu acreditava que esses aspectos eram parte de um binômio que agregava também o lado afetivo, cultural, social, simbólico e lúdico do esporte mais praticado do mundo. 

Na pandemia eu vi outra coisa. 
Ou senti outra coisa...
Principalmente por causa da postura dos clubes brasileiros... 

No meio do caos sanitário, da maior tragédia dos nossos tempos (até aqui) eu vi essas agremiações centenárias, esses polos agregadores de pessoas, essas partes importantes da construção de identidades e valores do Brasil, simplesmente virarem as costas para a maioria dos torcedores. O jogar para não perder dinheiro falou mais alto em TODOS os clubes. Não houve um que tenha, de verdade, se colocado ao lado das pessoas mais necessitadas ou se proposto a ser um canal de articulação verdadeira ou diálogo verdadeiro da sociedade com os entes públicos, como deveriam ou prometiam ser os clubes de futebol. 

Não. 

Os clubes se comportaram como os donos de restaurantes, os donos de shoppings, os donos de igrejas... Enfim! Os donos. Não os empregados ou o povo. 

O dinheiro era mais importante. 
Era mais importante jogar o Paulistão em Volta Redonda. 
Era mais importante viajar para falar com o presidente e fingir que os protocolos eram seguros. 
Era mais importante gritar gol ao lado do hospital de campanha, enquanto milhares morriam todos os dias. 
"Nós vamos deixar de jogar só porque tem gente morrendo?" chegou a perguntar o presidente de um clube gigantesco e popular. 

Pois é. 

Depois vinha o minutinho de silêncio ali e tudo bem. Umas cestas básicas doadas...

Coisas completamente inócuas dada a magnitude do tema.
Coisas totalmente desconectadas do caráter social que deveriam ter os clubes de futebol, que teoricamente são associações sem fins lucrativos que congregam pessoas, representam pessoas, que passam valores, constroem identidades, yadda,yadda,yadda,blablablá. 

Bom, mas foi só no Brasil isso? Não.

Os clubes europeus também fizeram força para voltar (acho que não tanto quanto os nossos daqui), mas lá os que representaram os donos acabaram sendo impedidos pelos governos. Sim, porque os órgãos públicos trabalharam contra a pandemia e não a favor como os nossos daqui... Isso, no entanto, é outra história... 

O fato é que, a partir desses acontecimentos, atitudes e discursos, é que meu radar ficou muito atento à contraposição entre o futebol negócio e o futebol das pessoas, como eu comecei a dizer mentalmente. 


O que eu defino como "futebol negócio", de forma bastante pejorativa, é o futebol feito para ganhar dinheiro. O futebol que tenta apenas ser um produto para vender. O futebol dos gestores, CEO's, empresários e do mundo corporativo com seus termos pomposos e promessas vazias de modernidade. O futebol que esmaga pessoas, que transforma jogadores em peças descartáveis e torcedores em meros consumidores. O futebol que tritura identidades em prol de argumentos comerciais e comercializáveis. O futebol das ditaduras e seus projetos de softpower e sportswashing. O futebol dos engravatados, dos VIPs, da Fifa, Conmebol e derivados...

Por outro lado, o que eu defino como "futebol das pessoas" é o futebol que nos fez gostar de futebol. O futebol do torcer, do emocionar, do sorrir e do chorar. O futebol que é feito para o torcedor de verdade. O futebol que busca ser símbolo de algo além de resultados esportivos e econômicos. O futebol que se preocupa com valores, começando pelos valores do esporte para a sociedade e passando por outros mais intangíveis ou subjetivos. O futebol que une. O futebol que é o único, ou um dos únicos, motivos para os mais carentes e oprimidos sorrirem. Esse é o futebol das pessoas para mim. 

Vejam... Sei que não é possível fazer do futebol profissional o futebol das pessoas apenas, mas me oponho fervorosamente contra esse movimento crescente de fazer o futebol profissional ser exclusivamente o futebol negócio. 

Esse movimento está ostensivamente disseminado entre quem efetivamente faz o futebol, com seus CEO's, métricas, lucros, parcerias e seu vocabulário excludente para fingir erudição e progresso. Está amplamente disseminado entre muitos torcedores, que celebram bilheterias, patrocínios, parceiros econômicos, premiação em eliminações, vendas de jovens jogadores e até do próprio clube. Está amplamente disseminado na imprensa esportiva, com reportagens, comentários e repercussões absolutamente acríticas ao futebol negócio e que não se preocupam com as consequências dele.

É por isso que eu faço questão de, neste texto e na minha atividade profissional diária, me opor a esse movimento e lembrar que o futebol não é apenas o futebol negócio, mas também (e principalmente) é o futebol das pessoas. Ou deveria ser...

Nesse último ponto da imprensa, aliás, me chama especialmente atenção como os jornalistas brasileiros (ou o que sobrou deles) falham em fornecer o mínimo contraponto a esse domínio do futebol negócio no dia a dia. Cito a imprensa especificamente pois sou jornalista e também porque entendo que não é papel do grupo dos poderosos e nem do torcedor ter essa visão crítica, mas é sim papel da imprensa. Ou deveria ser...

No tema das Sociedades Anônimas do Futebol, as SAF's, por exemplo, eu nem cheguei a ver qualquer problematização da coisa por nossos lados. Falam na SAF como futuro para o futebol por causa da "profissionalização", "modernização" e dinheiro envolvido, mas esquecem do que significa vender um clube e tudo o que ele representa para um grupo de empresários, um empresário qualquer, um ditador, ou um governo de marcante e flagrantes desrespeitos aos direitos humanos. 

Enfim, minúcias à parte, essa é a minha percepção e o meu incômodo sobre o que está acontecendo. Há muito mais para tratar dentro desse enorme guarda-chuva e, pelo menos neste momento, eu tenho a intenção de falar mais sobre isso. Não posso garantir, pois vira e mexe falo que vou escrever mais e acabo não cumprindo, mas... Quem sabe?  

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O que sobrou do Leeds...

Certamente tem algo muito errado quando os momentos que você mais gosta do seu time são coisas como uma queda característica do seu lateral-direito, um chute na bola que estava pronta para ser cobrada para sua área, um cântico sobre o seu ex-jogador estar gordo e uma entrada faltosa e sorridente no metido a craque do adversário. 

Pois é. É isso aí que mais tem me divertido no atual Leeds United.  


As quedas de Ayling, sempre seguidas de sorrisos, o chute de Tyler Adams após Klich segurar o braço do rival para impedir a cobrança de falta, os gritos em Elland Road para dizer que Kalvin Phillips estava gordo demais para jogar no Leeds e a entrada maldosa de Klich em Grealish, seguida de um grande sorriso por parte do polonês (lembrando os embates acalorados com o Villa na Championship 18-19) foram meus momentos favoritos do Leeds no pós-Copa.

Em dois jogos, os Whites perderam para o City por 3 a 1 em casa e empataram por 0 a 0 com o Newcastle fora. Ao todo nessas duas partidas o Leeds chutou 17 vezes e acertou o gol duas vezes, enquanto os dois rivais chutaram 42 vezes, acertando o gol em 14 oportunidades. A posse de bola contra o City foi de 31% e diante do Newcastle terminou em 41%. Nesses dois casos os números retrataram bem o que foram as partidas: o Leeds se defende, rouba a bola e perde a bola. Corre muito, mas joga muito pouco. 

Pode-se arguir que o bom momento e qualidade dos rivais explicam esses desempenhos, mas na verdade em 18 jogos oficiais da temporada 22-23, o Leeds é muito mais isso aí que qualquer outra coisa. Há pontos fora da curva como o triunfo diante do Chelsea e as boas atuações contra Tottenham e Arsenal, mas em geral, mesmo quando vence, o Leeds é isso aí. Um time que corre muito, se entrega muito, mas que não se preocupa em jogar com a bola nos pés. Não são altas trocas de passes ou posse colossal. Digo de tentar algo mesmo, além de bicar a bola pra frente. O Leeds não tenta nada senão correr de um lado para o outro para evitar o jogo do adversário. E mesmo isso o time não faz bem, haja vista as grandes chances que os rivais criam todo jogo. 

O que gera ainda mais desgosto - ao menos em mim - é ver como esse time rapidamente deixou de ser aquele que empolgava, que buscava e tentava apesar das limitações para se transformar nesse time negativo, que é o mais faltoso da Premier League (em média), que celebra empates como se fossem vitórias, que faz cera nos tiros de meta e que sequer busca se impor nos jogos.



Claro que sou suspeito para falar pois adoro os times e a figura do Bielsa, o ex-treinador, mas será que o caminho era esse mesmo? Destruir toda a identidade do clube para abraçar essa visão de futebol do americano Jesse Marsch? Se ao menos a troca tivesse valido o preço... Mas não tem sido o caso.

Sim, de fato a salvação na temporada passada veio com esse futebol aí, mas o resgate aconteceu só na última rodada porque o Burnley não fez a parte dele. Com Bielsa seria diferente? Não dá pra saber. Agora em 22-23, com quase um ano de trabalho de Marsch à frente do clube, com atletas versados no estilo Marsch/Red Bull como Adams, Aaronson e Kristensen, o Leeds tem esses desempenhos fraquíssimos e a mesma pontuação da temporada passada na décima sexta rodada. 

Sobre o estilo aliás... O modelo de jogo de Jesse Marsch é baseado nas ideias de Ralph Rangick, em especial nas ideias dele para os times da Red Bull, onde foi primeiro treinador e depois coordenador durante toda a implementação do modelo de jogo que seria empregado em todos os clubes da empresa. Marsch se orgulha - com razão - de ter feito todo o caminho dentro dos times da companhia, começando no New York, passando pelo Salzburg e chegando ao Leipzig. Na Alemanha, porém, ele foi muito mal e não soube como recolocar o time no prumo, sendo demitido por maus resultados meses depois de a equipe ter, sob o comando de Naggelsmann, ter chegado ao vice-campeonato nacional. Era de se esperar que o fracasso no Leipzig e o fato de treinar um time sem o DNA Red Bull pela primeira vez na carreira na Europa fossem engendrar algumas adaptações e mudanças, mas nesse momento elas ou não existem ou não têm êxito em campo.

Eu acompanhei muitos dos treinadores que foram da Red Bull nessa época, em especial o Roger Schmidt, de quem eu sou fã. Todos eles conseguiram fora dos times da Red Bull um futebol que também tivesse momento ofensivo no pacote. Que fosse mais do que se livrar da bola e sair correndo atrás. Aqui falo especialmente de Schmidt, mas também de Hassenhutl, Adi Hutter e Tedesco... Então não é apenas uma questão de estilo, mas de execução das ideias. 

Não vou me aprofundar mais nisso do modelo de jogo e princípios futebolísticos, mas sempre me chama a atenção esse contraste entre Marsch e Bielsa. Na personalidade os dois não poderiam ser mais diferentes, mas isso é gosto pessoal. 

Dentro de campo e vendo esse dia a dia dos dois com o mesmo clube, cada vez mais penso em Jesse como o "company man", o carreirista da empresa de energéticos. O cara entrou na empresa como estagiário, rezou a cartilha da Red Bull desde cedo, subiu na carreira e vê o futebol pelo prisma da eficiência e eficácia desse modelo de jogo que lhe foi ensinado. É como se Jesse Marsch fosse um franqueado da Red Bull, que comprou a ideia pra colocar ali no estabelecimento dele, não importa qual seja a demanda e a realidade. Quando não dá certo a culpa é dos jogadores, então ele vai lá e compra quem já jogou na Red Bull antes. 

Bielsa, por outro lado, desenvolveu uma forma única de trabalhar os jogadores tática, física e tecnicamente. É muito difícil achar alguém igual. Mesmo quem o segue faz as coisas diferentes... Para mim, Bielsa é um artesão. Esculpe, esmera, pinta, detalha e busca um produto único. Suas equipes são únicas e as peças de pouco valor se tornam pepitas. Quando não dá certo, ele segue tentando esculpi-las pois não sabe fazer outra coisa, mas às vezes os materiais e o escultor simplesmente não são bons o bastante. 

As duas maneiras podem dar certo. Eu gosto muito mais da segunda (óbvio) e tô vendo que detesto a primeira cada vez mais (ao menos essa forma aí do americano). 

Mas é isso... O que me restou foi rir do Ayling, lembrar do Klich e de todos aqueles jogadores que me fizeram tão feliz lá atrás. Que eram carismáticos, valentes e corajosos apesar das limitações. Que procuravam vencer e convencer. Ganhar e encantar. 

domingo, 18 de dezembro de 2022

Dudzicopa 30 - Um jogo pra enterrar qualquer análise

O vigésimo nono e último dia da Copa do Mundo me fez pensar em como vemos futebol, em humildade e em gratidão. Vou explicar:

Antes de a bola rolar uma das possibilidades avaliadas para a escalação da Argentina na final da Copa do Mundo contra a França era a entrada de Di Maria na equipe. Com a escalação dele pela direita de ataque da Argentina, o time poderia fazer dois contra um no lado esquerdo da defesa francesa, já que Mbappé, por opção do técnico, não recompõe por esse lado.

Logo que Scaloni divulgou a escalação, eu e tantos outros comentaristas e metidos a entendidos dissemos: 

 

"Corajosa a opção do Scaloni pois mais do que se preocupar com Mbappé, ele vai fazer Mbappé se preocupar com Di Maria"


Começou o jogo e Di Maria estava na esquerda. Jogando em cima de Koundé que é zagueiro de origem, no lado onde Dembelé, diferentemente de Mbappé, sim ajudava. 

O comentarista mais metido à besta ainda deve ter mandado um "pode ser algo de momento" para não dar o braço a torcer.

Eis que Di Maria passa o jogo todo aberto pela esquerda. 
Ele sofre o pênalti porque Dembelé, que volta pra marcar, deu um totó nele ali. 
Ele marca o segundo gol fechando da esquerda para o meio. 

Tudo isso em um primeiro tempo no qual a França não apareceu para o jogo? Por quê? Ninguém sabe, mas o tuitero e o comentarista tentam:

"Time inexperiente"
"Essa França sempre pareceu um time de momentos apenas" 

Fato é que aos 40 minutos Deschamps, que é mais exaltado pela capacidade de domar o grupo francês do que pela visão de jogo e estilo marcante, decide tirar Giroud e Dembelé para colocar Thuram e Muani. 

O comentarista (eu) tenta explicar...

"Foi afobado o Deschamps"
"Vai deixar o Mbappé mais livre pelo meio,  mas não vai ter ninguém brigando lá na frente"

E apesar do esforço de treinador e analista, nada muda. Nem pra melhor, nem pra pior. A Argentina segue superior no segundo tempo. Desperdiça algumas chances, mas vai carregando o jogo à moda dela, com De Paul apitando, Romero discutindo, Messi ditando, Álvarez brigando... Nem mesmo o Mbappé ficou tão centralizado, posto que ficou para Muani depois de alguns minutos.

Aos 25 minutos o técnico da França dobra a aposta e tenta algo que o time dele nunca fez nessa Copa. Vai pro tudo ou nada no 4-2-4 com Camavinga improvisado de lateral-esquerdo, onde sofreu demais no primeiro tempo contra a Tunísia.

O comentarista (eu) fala:

"Que salada o Deschamps fez! A França vai tentar assim o empate e sem o Griezmann que é o cara da bola parada"


Eis que tudo muda. Um chutão da defesa tem Otamendi soberano na jogada, até que ele decide proteger em vez de combater. Kolo Muani pega a bola e é derrubado. Pênalti. Mbappé, completamente sumido no jogo até os 35 do segundo tempo faz o gol. 

O comentarista (eu) pensa

"É hora do Messi pegar a bola e acalmar o jogo ou tirar a Argentina de trás, tal qual ele fez contra a Austrália"
Messi de fato faz isso. Só para na sequência ser desarmado facilmente por Coman. Dele a bola vai para Rabiot inverter, Mbappé tabelar com Thuram e fazer um golaço, empatando a partida por 2 a 2. 

E a Argentina quase perde o jogo no tempo normal porque o Messi tenta três vezes resolver e perde a bola em duas. Em uma delas, no entanto, há que se dizer; o camisa 10 quase determina a vitória no tempo normal.

Como o comentarista explica tudo isso?  Que tipo de respostas há? A Argentina não deixou de fazer o que fazia bem. A França não começou a jogar muito bem a partir das mudanças. E mesmo assim o jogo estava 2 a 2 e ia para a prorrogação. 

O comentarista (aí não sou eu) já está pensando em tangos de Gardel para explicar a relação conflituosa entre sucesso e fracasso na cultura argentina e na vida de Lionel. 

O outro já pensa no texto sobre Mbappé e a passagem de bastão.

Um terceiro caminha para a sociologia e tenta explicar quase por vias biológicas que os sul-americanos têm sangue quente e os europeus sangue frio e que por isso um soube se comportar e outro não. 



Vem o terceiro gol da Argentina! Explodem bombas, Messi chora. 




O comentarista pega a caneta e começa a procurar tangos de Gardel que expliquem o amor que há pelo futebol bem jogado e pela bola, que procura o craque. 

O outro pensa em um hai-kai com os nomes dos atletas ou num poema construtivista com as letras de Pulga.

Nem dá tempo de lembrar que o Montiel errou o lançamento e que por isso a bola caiu pra tabela e gol do craque. Também não dá tempo de explicar porque o mesmo Montiel abre o braço e comete pênalti, que Mbappé marca. 

Dá sim pra rasgar o hai-kai e a análise tática para buscar outro tango, fazer uma análise psicológica sobre o descontrole do Messi e sugerir que Dibu Martínez não estudou direito o adversário. 

Enquanto fazia isso o comentarista nem viu a defesaça que o Martínez fez contra o Muani agora! Falando nisso... O Muani entrou bem ou mal no jogo? Vamos ver o que o Twitter está falando sobre.... 

Vamos aos pênaltis. O comentarista chuta quem está melhor. O outro (eu) fala que quem bate primeiro normalmente vence. 

Mbappé faz o dele e a história está escrita. 3 gols, pênalti convertido, craque da Copa, passagem de bastão.

Messi caminha pra bola e a linha está escrita. "De novo nas finais, de novo nos pênaltis, Messi... Ops! Fez o gol. Apaga!"

Coman erra o dele. Certamente porque Dibu Martínez estudou muito as cobranças.

E Dybala faz o dele rompendo o mito de que quem entra pra bater pênalti sempre perde. 

Vai Tchouamení de grande Copa e chuta fora. Vai Paredes que perdeu lugar no time pra fazer o dele. 

Agora já tá mais fácil analisar... "Tal qual um tango de Gardel..." 

E vem Montiel que foi bem e depois mal pra terminar a noite bem. 

A Argentina é campeã! 

Foi o triunfo do..... 

....

....


Planejamento?  Não, apaga isso. O cara era interino e foi ficando. 
Da frieza? De jeito nenhum.
Dos escolhidos por Deus?  Pode ser....
Do técnico moderno que se adapta? Acho que dá hein? Desde que a gente esqueça que a Argentina se perdeu de novo num jogo. 

Quer saber? É o triunfo do comentarista! Que viu tudo que os caras lá dentro não viram e muito antes inclusive!  




E com esse texto e essa foto do Lautaro erguendo a taça eu fecho e enterro a série. 

Boa noite comentaristas! Hora de discutir quem fez tudo errado e porquê! 

Parabéns à Argentina!

Obrigado futebol por ser assim! 

sábado, 17 de dezembro de 2022

Dudzicopa 29 - Por mais jogos que "não valham tanto'

O vigésimo oitavo dia de Copa do Mundo me fez em pensar em competitividade e atratividade dos jogos de futebol. O tema me veio à mente pela disputa de terceiro lugar entre Croácia e Marrocos. O começo da partida foi muito bom, mas aos poucos o jogo foi caindo de qualidade pelos muitos erros e trocas de atletas dos dois times. Ainda assim um aspecto curioso é o de que normalmente essas disputas reservam bons jogos para assistirmos, já que "não vale tanto" e "os times estão mais relaxados". As afirmações são quase um senso comum e por isso queria a provocação: 

Se fossem menos competitivos e se valessem menos, os jogos de futebol seriam melhores?




Claro que não é simples assim, mas busco a reflexão. Porque se nós admitimos que alguns jogos são feios, brigados e pouco atrativos porque "não há espaço para erros" e porque "são muito disputados", então seria salutar buscar um jogo onde é permitido se equivocar, não é mesmo? 

Porque se há permissão ao erro, há espaço para o risco. 
E se há o risco, há atratividade e interesse. 
Sim, porque ninguém passaria duas horas na frente da televisão para ver dois times brigando para que nada acontecesse. 

Não é o caso de levar ao extremo de assistir o Fifa Legends Cup com ex-jogadores e suas fortunas se divertindo, mas também não podemos achar que "vale muito" e "não pode errar" sejam parâmetros para definir jogos de alto nível. Afinal, há muitos jogos de várzea que valem muito e no qual não se pode e nem se deve errar pelo bem de todos os envolvidos! Nem por isso eles são bons. 

No fundo me parece que a questão toda está inserida na base do JOGO de futebol. De qualquer jogo na verdade. 

Se joga para quê e pelo quê?
Não é só para ganhar. Ganhar é o objetivo, mas o JOGO não é só o objetivo. 
Entre amadores, é possível dizer que o resultado é basicamente irrelevante e que o legal é bater uma bolinha, tentar um drible, fazer uma defesaça ou um golaço com os amigos e conhecidos. 

Mas entre profissionais também é possível ter essa margem (o golaço, a defesaça, o drible) na medida em que estão reunidos os melhores dos melhores. Não era de se esperar que eles fossem capazes de nos demonstrar habilidades incríveis em vez de medos terríveis? 

Numa das minhas muitas andanças pela internet e por vários textos e ideias a respeito do futebol topei com essa citação aqui. Dizia que era do professor Jan Tamboer, cuja qualificação de acordo com a internet é filósofo do Movimento Humano e do Esporte. A citação é:


"Jogar é a busca pelo incomum, pelo surpreendente, 
pelo tentar tudo que é possível"


É isso que nós queremos ao assistir aos melhores jogadores em campo. Não é a busca pelo resultado, mas sim a busca pelo encanto aliado à competitividade. 

Como resgatamos isso? 
Para mim é diminuindo o peso do erro. Naturalizando o erro e o fracasso. 

Mas há espaço para isso nessa nossa lógica capitalista que mercantiliza tudo e que trata cada ser humano como uma peça a ser descartada, substituída ou defeituosa por não cumprir as expectativas financeiras, morais, profissionais e de outros? 

Acho que só indo para o amadorismo novamente. 

Acho que não vai dar... 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Dudzicopa 28 - A despedida de Modric

O vigésimo sétimo dia da Copa do Mundo me fez pensar em Modric. Sim, de novo em Modric. Porque amanhã deve ser o último jogo do craque croata em Mundiais. Eu fico pensando em Modric e lembrando de Hagi, de Lechkov, de Hasan Şaş, de Landon Donovan e de James Rodríguez...

Falo desses meias imponentes que aparecem nas Copas e marcam algumas seleções menos tradicionais do futebol. Sei que Hagi 90 foi o breakthrough, mas falo de Hagi 94, capitaneando a Romênia para as quartas de final quando estava no Brescia. E obviamente sei que Modric já era multicampeão e conhecido em 2018, mas me parece que aquela Copa é o momento em que ele deixa de ser uma das peças do meio de campo do Real Madrid para ser um craque levando um time adiante. Ao menos é isso que me lembro e sinto. Então nesse sentido ele está nesse grupo que citei.

O que eu acho mais curioso é lembrar que Modric nem sempre foi Modric. Em 2008 ele chegou ao Tottenham sendo disputado por equipes inglesas, mas aos 23 anos não estava nem perto de ser o jogador que é hoje. Tanto é que demorou para encontrar posição (jogou de ponta-esquerda e 10 atrás de um atacante nos Spurs) e demorou para engrenar. Quando o fez a temporada já era a 2010-11 e Modric, com 26 anos, tinha "falhado" em levar a Croácia para a Copa da África do Sul. 

A chegada ao Real Madrid foi na temporada 2012-13, mas era o time do Mourinho e o croata ficou no banco de Xabi Alonso, Khedira e Ozil. Em 2013-14 ele teve uma boa temporada como titular, mas a 14-15 foi marcada por uma lesão grave que o tirou dos campos por três meses. É só a partir da metade de 2015 que ele alcança a marca de intocável e encantador meiocampista do time. Só aos 30 anos! Que bom que deu certo para ele, mas vale  lembrar que o caminho do jogador de futebol às vezes é bem torto.

Falando nisso, uma curiosidade: em 2014 eu tive a oportunidade de falar com o craque croata face a face. Foi durante a Copa, após o jogo da Croácia contra o México na Arena Pernambuco (a foto abaixo foi tirada por mim na arquibancada). Os croatas perderam por 3 a 1 e ficaram fora do Mundial. No dia anterior, Modric havia cravado que os croatas venceriam.



 
Na zona mista, após a derrota, Modric passou na minha frente. Estava bravo, claro (ele, não eu). Eu e outros colegas resolvemos chamar...
Ele parou.
Veio falar com a gente após a eliminação. 


Eu não lembro se mais alguém perguntou e nem o quê, mas eu lembro que consegui fazer uma pergunta para ele. Não me orgulho do que perguntei, mas acho que ele deu uma resposta à altura.

Eu: - Ontem você disse que tinha certeza da vitória. O que aconteceu? 

 

Modric: - O que você espera que eu diga? Eu achava que éramos melhores e sigo achando que somos melhores, mas não conseguimos vencer. 


Na época eu lembro que fiquei me achando por ter irritado o Modric. 
Mas depois eu me senti envergonhado. 

O cara tava fora da Copa e parou pra falar comigo. E eu fui lá e quis questioná-lo por ter autoconfiança... 


Naquela Copa ele não jogou nada. Era esse Modric aqui:




Na seguinte foi o craque e Bola de Ouro. 

A vida seguiu e amanhã ele deve se despedir com um Mundial inferior ao de 18, mas superior aos de 06 e 14. 


Ah! Acho que teremos um bom jogo amanhã! Marrocos vai pra cima será?